Por Ana Paola Amorim*
Quando já não via mais nenhuma esperança, Severino, o retirante, do poeta João Cabral, quis tomar a decisão extrema de saltar da ponte da vida. Mas quis a fortuna que José, mestre carpina, o impedisse. Não por qualquer ilusão, mas apenas pela própria vida, mesmo severina, e por isso não poderia entregar os pontos. Assim como a do retirante, a vida vivida pelo mestre “foi sempre comprada à vista” e nunca esperou poder algum dia “comprá-la em grandes partidas”.
Sabe o mestre que pior não fica: “Severino, retirante,/ muita diferença faz/ entre lutar com as mãos/ e abandoná-las para trás/ porque ao menos esse mar/ não pode adiantar-se mais”. Mas o retrato de Severino é da própria desolação: “Seu José, mestre carpina,/ e que diferença faz/ que esse oceano vazio/ cresça ou não seus cabedais/ se nenhuma ponte mesmo/ é de vencê-lo capaz?”. E é essa desolação que José vai convencê-lo a enfrentar.
Esse diálogo ilustra bem o estado da arte da peleja pela democratização da comunicação, quando nem mesmo ao próprio debate é permitido ganhar visibilidade. Impedindo de construir as pontes estão interesses particulares poderosos – políticos e econômicos –, que há anos mantêm o monopólio da voz.
Os países vizinhos e irmãos da América Latina – Argentina, Equador, Uruguai (para citar alguns) – já avançaram em novas e democráticas leis para combater a concentração da propriedade de mídia em seus territórios. Ainda não conseguiram diluir tudo, mas já estão com a discussão avançada. Na Inglaterra, além da regulamentação da radiodifusão, muito recentemente foi aprovada uma lei de regulamentação também para a mídia impressa, depois que foi constatado abuso da liberdade pelos jornais do grande grupo econômico de mídia do empresário Rupert Murdoch.
A União Europeia fez um relatório extenso que reúne um conjunto de 30 recomendações para a “observância, a proteção, o apoio e a promoção do pluralismo e da liberdade da mídia na Europa”. Lá eles não estão discutindo se deve ou não haver fiscalização ou regulamentação, mas qual a qualidade desses modelos de regulamentação e fiscalização. Afinal, não há nenhuma atividade comercial que não seja regulamentada. Com a comunicação não pode e não deve ser diferente, pois não é uma atividade comercial qualquer. Trata-se de regulamentar formas de acesso ao debate público, que têm incidência direta na capacidade de representação, diversidade e pluralidade desse discurso. E isso vale também para a internet, que só pode ser considerada espaço de liberdade se sua economia política for construída em bases democráticas. Coisa que ainda não é. Mas está em disputa.
Campo produtivo
Quando olhamos para o Brasil, nem mesmo a discussão sobre a baixa qualidade da legislação de radiodifusão – que é uma concessão pública – consegue avançar. A legislação de referência, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), é de 1962. Está ultrapassado do ponto de vista tecnológico e político. Os principais artigos do capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal de 1988 permanecem sem regulamentação. Na história brasileira, a CF de 1988 foi o primeiro texto constitucional a incluir a defesa vigorosa da liberdade de expressão e a proibição explícita de qualquer forma de censura. Mas a falta de regulamentação permite que os grupos econômicos continuem a exercer o controle da voz e a censura econômica por meio da organização do setor em um inconstitucional sistema de monopólio e oligopólio.
Por parte do governo, não há nenhuma sinalização objetiva no sentido de sequer colocar o assunto em discussão. A presidenta Dilma Rousseff deixou isso claro na última entrevista que concedeu a blogueiros e blogueiras. Falta força política ao governo. E também empenho. Por parte dos empresários de mídia, nem é necessário falar. Serão sempre contrários a qualquer legislação que signifique dispersão do poder. É assim por aqui. E também por lá, onde a discussão avançou, e o muito ou o pouco que se alcançou teve de enfrentar a resistência dos grandes grupos. O poder nunca vai querer se reformar. Essa ilusão ninguém tem. “Jamais nos fiaram nada.”
Nesse cenário, desenha-se mesmo uma peleja miserável. Difícil até mesmo ver por onde começar a comprar a vida a retalho. Seria o próprio desalento, estivéssemos sozinhos. Mas somos muitos severinos e severinas, insistentes em defender o direito de ter voz. O 2º Encontro Nacional pela Democratização da Comunicação (ENDC) reuniu 700 pessoas, em Belo Horizonte, no fim da primeira quinzena de abril. Os convidados que vieram da Argentina e do Uruguai (onde já lograram alguns avanços) elogiaram o tamanho e a diversidade do movimento brasileiro. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), que organizou o evento, tem ganhado novas adesões. Cresce a consciência pública da importância de manter constante o debate em torno das melhores práticas para proteger e promover a liberdade de expressão para todos e todas.
A peleja pela comunicação democrática se faz um pouco a cada dia, sem ilusões de “comprá-la em grandes partidas”. Assim foi no Uruguai, como observou o professor Gustavo Gomez, ex-secretário nacional de Telecomunicações do Uruguai e um dos formuladores da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual em seu país (2014).
Também se faz em muitas frentes, pois não só de leis se constitui essa peleja. É necessário construir as bases políticas para a diversidade de vozes, que são justamente as políticas públicas de comunicação. E para isso é preciso que se reconheça a dimensão pública – e não privatista – da comunicação. E isso significa um longo, porém produtivo, campo de discussão e debate para que sejam construídas as formas mais democráticas e participativas de políticas que possam promover mais liberdade de expressão, abrindo espaço para pessoas, grupos ou mesmo comunidades inteiras que historicamente foram ou são silenciados – assim com os povos indígenas, com negros e negras, com jovens da periferia, dentre tantos.
Espaços públicos
Essa consciência ainda tem de ser construída e passa pelo desafio de quebrar os velhos paradigmas de comunicação governamental – voltada mais para o contato com a mídia do que o contato com o cidadão, como observa a professora Elizabeth Pazito Brandão – e instituir um paradigma de comunicação pública.
Todos os governos, em qualquer esfera, têm verba destinada à comunicação. Por que não discutir a destinação dessa verba para ações que estabeleçam um fluxo de mão dupla de informação por meio do qual o governo presta contas, mas também ouve as demandas e críticas de seus cidadãos e suas cidadãs?
Em 2016 haverá eleições municipais. O assunto tem de ser pautado e os candidatos e candidatas devem prestar contas de seus planos para a comunicação em seus municípios. Da mesma forma os governadores e as governadoras que estão em seu primeiro ano de mandato devem ser cobrados sobre o tema.
Em Minas Gerais, durante a campanha eleitoral de 2014, foi muito discutido o problema da falta de transparência na divulgação do gasto de verbas publicitárias. Espera-se que o novo governador, eleito com uma agenda mais progressista e promessas de gestão democrática e participativa, altere a situação e vá além, discutindo a política de comunicação da mesma forma que pretende discutir as políticas com os segmentos da educação, saúde, segurança pública, assistência social…
Para que seja reconhecida como política pública e tenha espaço para participação social, é necessário ainda construir os conselhos estaduais e municipais de comunicação. O Conselho de Comunicação Social é previsto pelo artigo 224 da Constituição Federal de 1988. Como observa o professor Venício de Lima, “obedecendo ao princípio constitucional da simetria, nove das vinte e seis constituições estaduais – Amazonas, Pará, Alagoas, Bahia, Paraíba, Goiás, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – e a lei orgânica do Distrito Federal incluíram a criação dos conselhos estaduais de comunicação social. Mas, assim como aconteceu com a Constituição Federal, a norma não tem sido garantia para criação, instalação ou funcionamento dos conselhos”.
Sem fortalecer e dar mais transparência e institucionalização à participação popular, a comunicação continuará privatizada e controlada por um pequeno grupo de grandes empresas de mídia, terreno propício para a corrupção da opinião pública, pois o que prevalece é a opinião de um sobre as de muitos. Criar espaços públicos de discussão, como os conselhos, é o mínimo de crédito que se pede para seguir nessa peleja conquistada a retalho com um pouco mais de igualdade de condições.
*É professora de Jornalismo da Universidade FUMEC, doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cerbras (Centro de Estudos Republicanos Brasileiros), da UFMG.