Por Paulo Victor Melo*
Os avanços e previsões democráticas de quase três décadas sendo destruídos em pouco mais de um mês. Essa é a síntese que melhor caracteriza o período Michel Temer, que, por meio de um processo de impeachment sem base legal, assumiu interinamente a Presidência da República. Conquistas sociais inseridas na Constituição Federal de 1988, algumas materializadas e consolidadas nas décadas seguintes e outras ainda no fundamental estágio de implementação, têm sido ameaçadas por medidas de Temer que buscam, em última instância, reduzir a democracia brasileira.
Uma das áreas em que é possível verificar o que é, na essência, o período Temer é a Comunicação Pública. Fundamental em sociedades democráticas pela capacidade de expressar a diversidade informativa, pelo potencial de produzir e difundir conteúdos e olhares diferentes da mídia privado-comercial, pelo papel indutor da cultura nacional e pelo espaço protagonista da sociedade, a Comunicação Pública, um dos modelos de radiodifusão previstos no artigo 223 da Constituição, tem o seu principal espaço de expressão – a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – ameaçado.
Criada em 2007, a EBC tem constituído uma programação com pluralidade e mais representativa da população (é lá que está, por exemplo, o Estação Plural, primeiro programa dedicado exclusivamente a pautas relacionadas ao segmento LGBT da televisão aberta brasileira), tem levado informação a brasileiros e brasileiras ignorados pela mídia privada (as rádios Nacional da Amazônia e Nacional Alto Solimões, por exemplo, chegam a lugares que nenhuma emissora comercial alcança), tem garantido prêmios internacionais ao jornalismo brasileiro, tem ampliado o espaço para difusão da música e do cinema nacionais e tem possibilitado o compartilhamento de informação e conhecimento (a Agência Brasil e a Radioagência Nacional distribuem gratuitamente conteúdo para milhares de jornais, blogs e emissoras de rádio do país).
Com as tentativas de Temer, é tudo isso e mais – como veremos a seguir – que está em risco. Primeiro, sem qualquer constrangimento ético, Temer desrespeitou a legislação e exonerou o diretor-presidente Ricardo Melo. Vale lembrar que, como forma de garantir autonomia frente ao Governo Federal, a Lei 11.652 (de criação da EBC), estabelece que o mandato do diretor-presidente deve ser de quatro anos, não coincidentes com os mandatos do Presidente da República. Temer só não teve êxito porque uma decisão liminar do STF reconduziu Ricardo Melo ao cargo. Mas os ataques à EBC não cessaram.
Integrantes da gestão Temer se apressaram em ir à imprensa dar declarações como: “o governo não tem interesse em concorrer com a mídia privada” e “gastos supérfluos devem ser revistos”. O Ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, por exemplo, é defensor do fechamento da EBC e chegou a afirmar que, para isso, vai até “o limite de suas forças”.
Outra possível medida, que circulou pela imprensa, foi a extinção do Conselho Curador da empresa, órgão que garante participação social na fiscalização e monitoramento dos princípios e objetivos dos veículos da EBC. Vale frisar que a existência de mecanismos como o Conselho Curador é um pressuposto verificado em experiências de comunicação públicas em diversas democracias.
As constantes tentativas de Temer em interferir na autonomia da EBC têm preocupado não apenas instituições e grupos brasileiros. Órgãos internacionais como Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Organização das Nações Unidas (ONU) se posicionaram, caracterizando como “passos negativos” para a democracia as ingerências de Temer na EBC. “A iniciativa de desenvolver uma emissora pública nacional alternativa com status independente foi um esforço positivo para a promoção do pluralismo na mídia brasileira, em especial, considerando-se os problemas de concentração da propriedade dos meios de comunicação no país… O Brasil está passando por um período crítico e precisa garantir a preservação dos avanços que alcançou na promoção da liberdade de expressão e do acesso à informação pública ao longo das duas últimas décadas”, diz um trecho do documento publicado pelos dois organismos internacionais.
Tanto as investidas de Temer quanto publicações na imprensa comercial, a exemplo de editoriais e artigos em jornais impressos, têm se baseado numa ideia de que a TV Brasil, principal veículo de comunicação da EBC, é uma “TV traço”, em referência a uma suposta baixa audiência da emissora. O que as páginas dos jornais e os integrantes da gestão Temer escondem propositadamente é que as pesquisas de audiência da EBC via Ibope são verificadas em apenas seis cidades brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, Salvador e Recife). Ou seja, não inclui a audiência nos demais 5.564 municípios do território nacional nem dados sobre telespectadores da TV por assinatura, da antena parabólica ou dos que acompanham a TV Brasil por mídias móveis. O fato do conteúdo da TV Brasil ser veiculado por mais de 50 geradoras e 740 retransmissoras (próprias, associadas e parceiras) é também ignorado.
Mas não apenas isso é ignorado. Os defensores do desmonte da EBC escondem também que, de acordo com monitoramento feito pela Agência Nacional do Cinema (Ancine), a TV Brasil foi a emissora que mais exibiu longas-metragens nacionais em 2015. Foram 120 filmes nacionais, enquanto a Globo reproduziu 87, a Record veiculou três, a Band um e o SBT nenhum.
É também na TV Brasil que os conteúdos educativos, as produções independentes e a programação feita fora do eixo Rio-São Paulo têm espaço na televisão brasileira. Vejamos:
– Enquanto as emissoras comerciais destinam cerca de 2,8% da grade de programação para programas educativos, a TV Brasil contempla 10,8% de seu conteúdo com essa categoria;
– Por meio do PRODAV TVs Públicas, gerido pela emissora pública, mais de 60 milhões de reais já foram destinados para a produção independente de todo o país;
– E de cada cinco horas de programação na TV Brasil, ao menos 1h30 é ocupada com conteúdos produzidos fora dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Frente a tudo isso, não restam dúvidas: a EBC – que foi fruto de décadas de mobilização social e popular e formulações acadêmicas em defesa da democratização das comunicações – representa a principal tentativa de mudança de perspectiva sobre a Comunicação Pública pelo Estado brasileiro, até então negligenciada ao longo da história e pelos diversos governos. Não que os poucos mais de sete anos de existência da EBC tenham conseguido superar toda a história de secundarização da mídia pública no país, afinal também os governos Lula e Dilma investiram pouco nos veículos que compõem a empresa pública, mas os ataques de Temer à EBC são justamente pelas qualidades e potencialidades – e não pelos problemas – que ela possui. Em outros termos, defender a ampliação da democracia brasileira significa defender mais autonomia e investimentos na EBC e não o seu sucateamento ou fechamento.
*Paulo Victor Melo, jornalista. Professor substituto do curso de Comunicação da UFAL. Mestre em Comunicação e Sociedade pela UFS. Doutorando em Comunicação e Política na UFBA. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Cepos (Comunicação, Economia Política e Sociedade) e do Centro de Comunicação, Cidadania e Democracia da UFBA.