A centralidade do trabalho cultural: autonomia e precarização

jornalistaPor Verlane Aragão Santos*

O realce dado às atividades culturais como setor econômico com grandes potencialidades de lucros tem fortalecido a tese de que na atual fase do capitalismo a cultura assumiria a centralidade na produção de valor. Tal noção tem sido coroada em contexto histórico muito particular, dado o papel das tecnologias da informação e da comunicação (TIC), não obstante resultar de mais um ciclo de crise, próprio da dinâmica do capital. Sem entrar nas controvérsias que o tema pode suscitar, assumiremos aqui a perspectiva de que a centralidade na produção de valor continua sendo do trabalho, mais precisamente, do trabalho intelectual, cultural, criativo. A centralidade da cultura implica em pensarmos na centralidade do trabalho cultural.

Vale acentuar, contudo, que não compactuamos com as teses apresentadas, já na década de 80, por André Gorz e Claus Offe, entre outros, sobre o fim da sociedade do trabalho. Tão pouco com a tese do trabalho imaterial, defendida por Giusepe Cocco, baseada nas proposições de Mauricio Lazzarato e Toni Negri, que defendem a dissociação do trabalho em relação ao capital, conjugada nas novas formas reticulares de produção.

A discussão a ser realizada, então, não pode renunciar à busca de perscrutar as novas relações que se estabelecem entre capital e trabalho, notadamente em um quadro em que os ativos financeiros fortemente negociáveis são os relativos aos ganhos dos direitos de propriedade intelectual e autoral, próprios dos ramos baseados na inovação, no conhecimento e na criatividade, de um lado, e a crescente precarização e exploração do trabalho sob a forma de trabalho autônomo, de outro.

O desemprego estrutural, como resultante da reestruturação produtiva e da baixa dinâmica macroeconômica das últimas décadas, corresponde à busca pelas empresas de novas estratégias de corte de custos, em especial em relação ao uso e à gestão da força de trabalho, com a necessidade do sistema de dar conta da massa de trabalhadores que não conseguirá, a partir de então, inserir-se nas estruturas formais de ocupação. Mais que isso, há a busca por estratégias de apropriação da riqueza produzida por esse trabalho não formalmente subsumido, ou seja, como trabalho livre assalariado. Neste contexto, redesenha-se o perfil desejado de trabalhador, projetando-se assim:

[…] a imagem do “novo trabalhador” como um ser que substitui a carreira em um emprego assalariado de longo prazo pelo desenvolvimento individual através da venda de sua força de trabalho em uma série de ocupações contingentes, obtidas através da demonstração pública de disposição e competência para atividades e condições de trabalho em constantes mudanças, isto é, como empresário de si mesmo (SILVA, 2003, p. 165-166).

No interior das próprias estruturas produtivas, as demandas por trabalhador acentuaram aspectos como a “polivalência”, a “multi-habilidade”, estabelecendo um “modelo da competência” em detrimento ao modelo baseado no posto de trabalho. O modelo da competência resultaria das transformações em curso no conteúdo do trabalho, em que três noções devem ser consideradas: 1- a qualidade de evento/acontecimento que tomam as esferas do trabalho; 2- o crescente papel que passa a ter a comunicação nos processos de trabalho, e; 3- a importância/avanço da lógica do serviço às atividades econômicas (ZARIFIAN, 1999).

O trabalho intelectual assume papel essencial no atual estágio de desenvolvimento das forças capitalistas de produção e consequentemente no âmbito das lutas de classes. No contexto da Terceira Revolução Industrial, a questão que se coloca é a da subsunção real do trabalho intelectual (cultural, criativo) no capital “e, simetricamente, da possibilidade de uma superação da divisão entre corpo e espírito no trabalho e do atual sistema de dominação” (BOLAÑO, 2002, p. 62). Bolaño (Ibid.) aponta ainda para o papel crucial do setor de informática ou das TIC para o desenvolvimento do capitalismo, por ampliar a subsunção do trabalho, reestruturando as bases da acumulação. Refere-se mais especificamente ao trabalho intelectual onde está incluído o trabalho dos produtores de software:

O significado revolucionário dessa transformação fundamental do trabalho – e consequentemente da própria estrutura da classe trabalhadora – em que as funções de coordenação e comunicação ganham uma importância nunca antes imaginada, é tanto maior quanto o novo padrão de consumo exige também o aumento da intelectualização do próprio público de interesse, reforçando o caráter de mediador cultural que tem o trabalho intelectual (BOLAÑO, 2002: 63).

O que queremos enunciar, assim, são os limites impostos ao processo de subsunção do trabalho intelectual no capital, tal como defende Bolaño, dado o papel de mediação que esse tipo de trabalho assume no interior das indústrias culturais, garantindo a articulação dos interesses dos capitais e do Estado com as massas nos seus anseios mais íntimos e em diálogo direto aos elementos simbólicos forjados pelas culturas populares.

O quadro se definiria nos termos seguintes:

[…] além da subsunção do trabalho intelectual, necessário a esta nova fase da acumulação capitalista, ensaia-se cada vez mais neste setor novas formas de gestão baseadas naquilo que Pierre-Michel Menger vem chamando de “hiperflexibilidade da mão-de-obra”, traduzido pelo setor como “trabalho por projetos”. Transitoriedades, retração de direitos trabalhistas, enaltecimento das diferenças de remuneração, apologia da concorrência interindividual, auto-emprego, vistos agora, com sinal invertido, como legítimas formas de se valorizar e remunerar os talentos individuais, a criatividade do trabalhador precarizado (LOPES & SANTOS, 2011).

Instala-se o dissenso no interior da classe trabalhadora, já que se perde a identidade comum, transpondo-se em seu lugar a noção de empreendedor, agente individual, cujo trabalho consumido assume a pecha da ação criativa e inovadora. Não podemos, contudo, esquecer que tudo se reduz a trabalho humano, a dispêndio de energia vital, física e mental, que deverá se traduzir na forma mercadoria, no valor, sob a lógica capitalista. O empreendedor cultural é o desdobramento para a área da cultura daquele processo mais amplo, que atinge todo o conjunto da economia:

O trinômio inovação-criatividade-empreendedorismo migra do campo discursivo específico do setor empresarial e invade o setor cultural, e esse fenômeno de colonização discursiva faz crer que o projeto hegemônico do capital continua enfrentando dificuldades para conseguir lograr êxito. Os projetos identificatórios dos anos 1990 são aqui retomados para que desta vez o setor cultural contribua e intervenha em desenvolvimentos científicos, tecnológicos, políticos, industriais e comerciais em níveis cada vez mais amplos (BRAGA, 2015: 220).

Não devemos esquecer que é exatamente na busca de estabelecer uma estratégia que contrariasse a perda de rentabilidade, que países como o Reino Unido e a Austrália, na década de 1990, propuseram planos de retomada de crescimento econômico baseados nos chamados setores criativos. No interior desses setores, acomodam-se atividades com características próprias, em termos de seu desenvolvimento histórico, em especial no que diz respeito à incorporação da tecnologia e ao uso da força de trabalho. Figuram, dentre estes, desde o design, o desenvolvimento de software para jogos eletrônicos, a música, passando pelos museus e chegando ao patrimônio material e o chamado patrimônio imaterial (conforme Plano da Secretaria da Economia Criativa do MinC, na discriminação dos “setores criativos”, termo em substituição à expressão inglesa creative industries).

Referências bibliográficas

BOLAÑO, César. “Trabalho Intelectual, Comunicação e Capitalismo. A reconfiguração do fator subjetivo na atual reestruturação produtiva”. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 12, p. 53-78, dez. 2002.

BRAGA, William. “Novas Identidades para o Novo Mundo do Trabalho através da Cultura: o velho mantra do capitalismo revisitado”. Revista Eptic Online, v. 17, n.1, p. 218-235, jan.-abr. 2015.

SILVA, Luiz Antonio Machado da. Mercado de Trabalho, ontem e hoje: informalidade e empregabilidade como categorias de entendimento. In.: SANTANA, M. & RAMALHO, J. Além da Fábrica. Trabalhadores, sindicatos e a nova questão social. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 140-178.

LOPES, Ruy Sardinha & SANTOS, Verlane Aragão. Economia, cultura e criatividade: tensões e contradições. Carta Maior, São Paulo, 25 fev. 2012. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Economia-cultura-e-criatividade-tensoes-e-contradicoes-%0D%0A/12/16464>. Acesso em: 03 out. 2015.

ZARIFIAN, Philippe. Objectif Compétence. Paris: Liaisons, 1999.

*Verlane Aragão Santos é professora dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e em Economia da Universidade Federal de Sergipe e líder do grupo de pesquisa Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento, que compõe com o grupo CEPOS o Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM).

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