A doce fantasia da neutralidade e a amarga criminalização do jornalismo

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Foto: Matheus Chaparrini

Por Eduardo Silveira de Menezes* (Sul 21)

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) pôs fim à exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista. Há época, o ministro Gilmar Mendes, um conhecido “pizzaiolo tucano” – então presidente da Casa –, justificou seu voto contra a obrigatoriedade do diploma por meio de uma infeliz analogia. Sua alegação era de que, embora excelentes “chefes de cozinha” possam ser formados numa faculdade de culinária, tal aprendizado, por si só, não legitimaria a exigência de que toda refeição seja preparada por alguém com curso superior na área. Uma declaração bem ao gosto da maior parte dos grandes grupos de mídia, cujo discurso em defesa de uma suposta “isenção jornalística” corresponde, na verdade, à materialização cínica de suas ideologias.

A Folha de São Paulo, por exemplo, cuja linha editorial apresenta bastante afinidade com a de grupos de comunicação gaúchos como a RBS, não exige que seus jornalistas possuam formação na área. O principal requisito para ingressar nos “programas de treinamento” da empresa paulista é que o postulante à vaga tenha afinidade com o seu “projeto editorial” (sua posição política). Esta perspectiva, infelizmente, não destoa da lógica utilizada por muitos cursos de jornalismo durante o processo de formação, uma vez que a principal preocupação tem sido a de legitimar um perfil de profissional apto a obedecer regras; sem, de fato, compreender que o repórter só pode exercer com precisão sua tarefa de relatar os acontecimentos, quando não se limita a reportá-los apenas a partir das vozes oficiais.

Ponto de vista do cidadão

Todo jornalista possui referências. Cada acontecimento é narrado a partir de uma interpretação do mundo. Não é possível separar a atuação como repórter da atuação como ser humano. Jornalistas não são computadores, máquinas fotográficas ou teleprômpters. Como diz o teólogo Leonardo Boff, no livro A águia e a galinha, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Aplicar esse fundamento ao jornalismo é essencial para compreender a sua essência. Aliás, esta é uma boa forma de evitar a doce fantasia de se escolher a profissão a partir do que é dito no verso de um achocolatado. Não existe “a” versão do fato. Existem, sim, versões de um mesmo fato. Cada notícia, por consequência, é uma das versões do fato levada ao conhecimento público. A possibilidade de acesso às diversas versões de um mesmo fato é o pressuposto básico de qualquer democracia, pois, conforme dizia o sociólogo Herbert de Souza – o Betinho –, “o termômetro que mede a democracia em uma sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação”.

Uma criminalização amarga

O lamentável episódio da desocupação da sede da Secretaria da Fazenda, na última quarta-feira, dia 15, que resultou na prisão do repórter Matheus Chaparini, do Jornal Já, evidencia o quanto alguns veículos da chamada grande mídia – e alguns dos seus dóceis jornalistas – tendem a materializar a ideologia por meio do cinismo. Essa definição pertence ao filósofo esloveno Slavoj Žižek. Para ele, a ilusão estaria na base do próprio fazer; o que, sem dúvida, se aplica ao fazer jornalístico. Nas palavras do autor, “eles sabem que, em sua atividade, estão seguindo uma ilusão, mas fazem-na assim mesmo”. Seguindo por essa linha de raciocínio, é possível dizer que todo jornalista incapaz de solidarizar-se com a prisão de Chaparini, na verdade, sabe que o seu entendimento sobre a prática profissional mascara uma forma particular de ver o mundo.

O repórter do Jornal Já estava exatamente onde todo jornalista deve estar quando se dispõe a cobrir um acontecimento; isto é, no local onde o fato ocorre. Estando no lugar certo, sua posição diante do fato tende a ser a que mais se aproxima da realidade, pois ele passa a ter a possibilidade de seguir um dos pressupostos básicos da profissão: ouvir todos os lados da história. Essa tomada de posição contribui para abandonar a ilusão de que, para reportar um acontecimento, basta ouvir as fontes legitimadas pelo poder constituído. Notícias cuja principal informação diz respeito ao número de pessoas detidas não se constituem como as únicas versões possíveis de reportar o fato.

A luta dos estudantes gaúchos por uma educação de qualidade não pode ser tratada em sua complexidade apenas com a descrição do local, do dia, do horário e do número de pessoas presentes na ocupação. A problematização sobre a forma como o governo tem lidado com essa questão não pode ser silenciada. O questionamento sobre a necessidade da presença de policiais militares mulheres para a retirada das estudantes presentes na ocupação não pode ficar sem resposta. Quem acha que essas reflexões – que resultam do ponto de vista de Chaparini diante do acontecimento – são menos importantes do que o número de pessoas retiradas do local, não está comprometido em fazer jornalismo; limita-se a cumprir o papel de relações públicas, não oficial, do governador do estado, José Ivo Sartori (PMDB).

Muitos colegas de profissão – acredito que a maioria – foram solidários ao repórter do Jornal Já. Não é todo dia que somos surpreendidos com a notícia de que um trabalhador, no exercício da sua profissão, é levado ao Presídio Central e, posteriormente, passa a responder por crimes como: corrupção de menores, organização criminosa, esbulho possessório (apropriar-se de imóvel público) e dano ao patrimônio público. O Jornalista é, antes de tudo, um cidadão. Os jornalistas que criticam a atitude do repórter estão empastelados. Acostumaram-se a perder o raciocínio com a mesma velocidade que devoram um achocolatado, pois não fogem ao pensamento infantil de uma “neutralidade possível”. Toda objetividade pressupõe, como bem pontuou o saudoso Adelmo Genro Filho, uma produção humana, que, por sua vez, convive com a subjetividade o tempo todo.

É preciso, portanto, ter coragem intelectual para superar a estreita visão positivista, predominante no século XIX, de que a notícia é o puro reflexo de uma realidade inquestionável. Foi a partir dessa época, aliás, que o jornalismo característico dos dois séculos anteriores, com posicionamento político assumido, passou a dar lugar a um oportunista “jornalismo de informação”. O principal argumento para a mudança de paradigma esteve alicerçado na defesa da separação entre “fatos” e “opiniões”. Uma divisão meramente categórica, que, em verdade, obedece a critérios subjetivos. Tal mudança foi marcada pela expansão da imprensa e pela consequente transformação da notícia em mercadoria. Interpretar o mundo sob este prisma, nos dias de hoje, é, por si só, uma prova de que não se pode olhar para os fatos sem evidenciar um ponto de vista ideológico. Como diria Cláudio Abramo, “a ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista”. Para melhor compreender os dilemas dessa tão nobre profissão, nos dias de hoje, basta parafraseá-lo; afinal, se for amargo para quem exerce a cidadania lutando por melhorias na educação, será amargo para quem ainda não desistiu de fazer jornalismo.

* Eduardo Silveira de Menezes é jornalista, mestre em Ciência da Comunicação pela Unisinos e doutorando em Letras pela UCPel. E-mail: dudumenezes@gmail.com

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