#FicaBBB: ativismo digital, hashtags e fadas sensatas

Por Aianne Amado (1) e Carlos Figueiredo (2)

No mesmo dia que Tiago Leifert anunciou aos participantes que, pela primeira vez na história, a edição do Big Brother Brasil seria estendida devido ao apelo do público, ouviram-se da janela gritos em celebração quando o brother Babu Santana terminou sua participação na prova do líder como favorito, como numa copa do mundo de um jogador só. Na timeline do Twitter, memes surgiam numa velocidade humanamente impossível de consumir em totalidade.

Horas antes, o presidente Jair Bolsonaro havia demitido o então ministro da saúde, em meio à pandemia global do COVID-19. A janela também anunciou: dessa vez com panelas. Os memes tinham um tom mais fatalista que aqueles que viriam mais tarde, mas ainda regados de humor.

Essas duas situações nos levaram a algumas reflexões que tentaremos levantar aqui. Começando pelo artigo “How the world’s collective attention is being paid to a pandemic: COVID-19 related 1-gram time series for 24 languages on Twitter” (3), que analisa os principais termos ou símbolos utilizados nas três primeiras semanas de março de 2020 para cada língua no Twitter. Dos 20 resultados para a língua portuguesa, 13 estavam relacionadas ao reality show da Rede Globo e seus participantes, contra 5 sobre a pandemia. A dessemelhança com os resultados de outras línguas também chama atenção:



Lista dos termos mais recorrentes durante as três primeiras semanas de março dentre as 6 línguas mais faladas do site de rede social Twitter. Fonte: ALSHAABI et. al, 2020

Ao longo dos anos, o debate sobre pautas sociais no Big Brother Brasil vem crescendo, já desenhado desde a seleção dos participantes pela produção do programa, tendo dentre eles ativistas e defensores de causas como gênero, raça e sexualidade (curiosamente, debates partidários não são comuns entre o elenco – ou, se são, não passam pelo corte da edição). Nesta 20ª edição, essas pautas ganharam destaque central para o desenrolar da competição, especialmente as duas primeiras problemáticas citadas. Ademais, essa também é a primeira edição em que participam pessoas já famosas antes do programa, com uma base de seguidores fiéis nas redes sociais, o que acalorou as rivalidades dentro e fora do confinamento.

Os fãs sempre estiveram inseridos na lógica do programa: Bruno Campanella mostra fandoms altamente organizados em sua tese, escrita há 10 anos (4). E, como em todo consumo de fã, o afeto interfere imediatamente na interpretação do texto, mas, especificamente em realitys de votação pública, há a certeza de interferência no resultado final mediante participação. Contar com um público fiel e parcial já antes da disputa começar proporcionou uma vantagem única.

Como eficiente programa de entretenimento, o Big Brother dá ao público a oportunidade de criar narrativas maniqueístas, de fácil acompanhamento até para aqueles que não assistem assiduamente. O primeiro grande arco narrativo do BBB 20 aconteceu logo nas primeiras semanas do programa e foi pautado pela desigualdade de gênero, com denúncias de assédio e machismo por alguns homens da casa, os “machos escrotos”; e exaltação do comportamento da maioria das mulheres, que receberam o carinhoso apelido de “fadas sensatas”, com base na identidade da campanha virtual da participante Manu Gavassi, a mais famosa pré-BBB. As fadas sensatas são as que “nunca erraram”, que percebem as injustiças sociais e não têm medo de combatê-las, defensoras da verdade e igualdade. Já os machos foram prontamente eliminados, um a um.

Entretanto, a temática central da edição ainda estava por vir: o preconceito racial. E, num plot twist hollywoodiano, eram as fadas quem assumiriam o papel de vilãs para o mocinho Babu, que tinha uma certa proximidade com o grupo dos machos. Babu é negro e anda pela casa orgulhosamente ostentando seu pente garfo preso no cabelo crespo. Do outro lado figura um autointitulado “grupo hippie”, com membros brancos à exceção de Thelma, amiga e protegida do ator carioca. Dentre alguns posicionamentos infelizes, o grupo associou Babu a monstruosidades e macumbas. As fadas sensatas agora são, jocosamente, chamadas por alguns de “fadas senzalas”. As disputas, claro, são definitivamente resolvidas no paredão (que, por sinal, bateu o recorde mundial do formato com 1,5 bilhões de votos na disputa entre Prior, melhor amigo de Babu, e Manu Gavassi). Isso não impede que o debate ganhe espaço também nas redes sociais, como deixa claro o levantamento citado acima. Não basta votar, é preciso expressar o voto, se posicionar, fazer campanha, cobrar posicionamento de celebridades e figuras públicas (até o eterno Luke Skywalker, Mark Hammil, entrou para a briga). As hahstags tomam lugar de bandeiras, sendo usadas para evidenciar, orgulhosamente, de que lado está. #FicaFulano e #ForaCiclano. Enquanto isso, o discurso social que iniciou a disputa se esvazia, dando lugar a memes, fake news e ameaças. Não há teoria ou embasamento. Surgem duas competições: uma interna, pela vitória nas votações; e uma externa, pelo fandom mais forte.

Olhando bem, parece até que já vimos esse filme antes.

A participação do público ao BBB 20, programa de TV frequentemente visto com maus olhos pela academia, ilustra diversos pontos discutidos atualmente pelos teóricos da Comunicação Social no Brasil: desde as próprias causas sociais e a respectiva aderência dos espectadores, própria dos Estudos Culturais, até discussões sobre convergência e segunda tela – algo que a Rede Globo demorou para dominar mas hoje usa com maestria. Dentro do campo da EPC (5), alguns pontos que merecem aprofundamentos são: o crescente interesse da emissora nos debates sociais e como ocorre a apropriação desses temas pela Globo; a função interação e as formas de captar o engajamento do público; as maneiras usadas para incorporar a movimentação nos sites de rede social que, inicialmente, não trariam lucros diretos para a produção; e a incorporação da lógica dos fandoms em movimentos políticos.

Sobre esse último, propomos destacar dois conceitos que vem ganhando espaço dentro dos Estudos de Fãs: o fanactivism, ou ativismo de fã, quando a presença no fandom influencia a participação em algum movimento social ou militância; e o fã político, aquele que, mais que um eleitor, possui um comportamento interativo com a figura pública. Até onde vai a causa? Onde o afeto passa a imperar? É possível reconhecer que seu ídolo pode se tornar vilão? Teria meu candidato se tornado uma fada sensata?


Postagem do ator, escritor e comediante Gregorio Duvivier no Twitter.

Grande de parte dos movimentos sociais e partidos de esquerda fazem uso irrefletido das plataformas digitais como ferramentas de comunicação, e acabam aderindo à lógica mercantilista dessas empresas ou ainda usando a ferramenta sem qualquer estratégia ou análise de conjuntura adequada. Gramsci (8), ao analisar como os partidos progressistas poderiam transformar o senso comum, usou uma metáfora comparando as estratégias de convencimento com táticas de guerra. Ele notou que, assim como nos confrontos bélicos de seu tempo, as lutas ideológicas estavam passando cada vez mais da guerra de movimento, realizada em campo aberto onde as forças se confrontavam diretamente, para a guerra de trincheira em que o exército vencedor derruba as trincheiras dos adversários uma a uma. Dessa forma, os partidos progressistas, para transformarem o senso comum e criarem novos consensos, deveriam quebrar resistências culturais, aproveitando-se de elementos progressistas presentes na cultura popular.

O uso da guerra de trincheiras enquanto tática não significaria não usar a guerra de movimento, mas utilizar um conjunto de táticas em diferentes contexto. Tanto que ao citar o exemplo de Gandhi, Gramsci observa que o indiano utilizou três formas de tática: a guerra de movimento, a guerra de posição e a guerra subterrânea para livra a Índia do jugo britânico. A Greve, por exemplo, é considerada guerra de movimento, mas deve vir conjugada com outras táticas para ser efetiva. Os algoritmos utilizados pelas plataformas digitais, ao enclausurarem os usuários de acordo com suas preferências políticas, musicais etc; tornam difícil a guerra de trincheiras e assemelha a disputa política a guerra de movimento em que dois exércitos se enfrentam em campo aberto.

Assim, a esquerda encontra dificuldades para derrubar trincheiras nas redes sociais. Os fandomssejam eles seja políticos, midiáticos ou de participantes do BBB – se baseiam numa identificação primária, muitas vezes pautada pelo reconhecimento de valores morais. No caso dos fandoms políticos, essa identificação se baseia também, normalmente, em uma suposta superioridade moral que renega totalmente a experiência do outro, visto como adversário, e cobra uma aceitação moral total a uma série de preceitos, o que vai de encontro às táticas preconizadas por Gramsci para a criação de um novo senso comum. Na verdade, as bolhas de filtros se apresentam como muros,intransponíveis às táticas dos progressistas em superá-los.

Por fim, nas redes sociais, a extrema direita utiliza uma sofisticada guerra subterrânea de desinformação com uso de Fake News, Bots, grupos de whatsapp etc., lançando mão de recursos e expertises indisponíveis aos movimentos sociais contra-hegemônicos, enquanto os partidos de esquerda utilizam táticas da década passada como os “blogs progressistas” que apoiavam os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). O remédio para vencer a desinformação é político. O grande problema é que a própria esquerda abandonou o trabalho de base. A esquerda, no Brasil, cresceu a partir da construção de redes sociais de solidariedade offline, e isso foi trocado, em grande medida, pela política partidária e seus acordos, principalmente durante os governos Lula e Dilma. Se concordamos com a existência de fandoms políticos, as estratégias neles focadas, através de plataformas digitais e hashtags, são de fato oportunas. Porém, não é usando-as como principal ou único recurso que essas ou novas redes, mais adequadas aos novos desafios, serão reconstruídas – muito menos tentando evangelizar a população a partir da lógica da superioridade moral. Um novo tipo de estratégia deve ser adotada nas redes e fora delas, uma tática politizadora. Acreditamos ter exposto os problemas e desafios, e que as soluções devem ser buscadas a partir desse diagnóstico.

  1. Mestre em Comunicação Social. Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos
  2. Jornalista, Doutor em Sociologia. Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos
  3. ALSHAABI, Thayer; ARNOLD, Michael V.; MINOT, Joshua R.; ADAMS, Jane Lydia. DEWHURST, David Rushing; REAGAN, Andrew J; MUHAMAD, Roby; DANFORTH, Christopher M.; DODDS, Peter Sheridan. How the world’s collective attention is being paid to a pandemic:COVID-19 related 1-gram time series for 24 languages on Twitter. Março de 2020. Disponível em: http://pdodds.w3.uvm.edu/permanent-share/covid19-ngrams-revtex4.pd
  4. CAMPANELLA, Bruno Roberto. Perspectivas do Cotidiano: um estudo sobre os fãs do programa Big Brother Brasil. 2010. 207 p. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: http://www.compos.org.br/data/teses_e_dissertacoes/6b56215cf6a29e8080ec8e6e8a733491.pdf
  5. Raphael (6) e Campanella (7) defendem a inserção da EPC nos estudos sobre o reality show, alegando que “without understanding the political-economic forces that drove the spread of these genre, textual and audience studies may risk reifying it as an expression of audience demand, or of their creators, or of a cultural, discursive, or ontological shift unrelated to the needs of those who run the television industry.” (RAPHAEL 2004, p.119)
  6. RAPHAEL, Chad. The political-economic origins of Reali-TV. In: MURRAY, Susan & OUELLETTE, Laurie (eds.). Reality TV: Remaking Television Culture. 2. ed. New York: NYU Press, 2009, p. 123-140. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/295869264_The_political-economic_origins_of_Reali-TV
  7. CAMPANELLA, Bruno Roberto. Investindo no Big Brother Brasil: uma análise da economia política de um marco da indústria midiática brasileira. E-Compós,v. 8, 11, 2007. Disponível em: https://www.e-compos.org.br/e-compos/article/view/133
  8. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

Torcedores, calma! A Amazon no futebol brasileiro pode sinalizar mais para o futuro que para o presente

Anderson Santos1

O texto para esta participação na Coluna Cepos seria sobre a proposta de lei para clube-empresa no Brasil. O esboço já estava pronto, inclusive. Mas o anúncio das negociações do Flamengo com a Amazon para o patrocínio máster vem gerando boatos sobre a entrada do conglomerado internacional na transmissão de futebol no Brasil, considerando que o clube carioca entrou em guerra com o Grupo Globo nestes primeiros meses do ano2. Enquanto pesquisador do assunto, fui instigado por um amigo a tratar disso. É a partir deste diálogo que trato aqui sobre o tema.

Pontos de partida

Outros jornalistas e especialistas sobre marketing do futebol escreveram sobre isso nos últimos dias, ainda que o tema também esteja em textos de sites e blogs de torcedores do clube carioca. Destaco dois deles e pretendo desenvolver alguns argumentos a partir do que tratam: “A tensão entre Flamengo e Globo têm nome: Amazon”, de Bruno Maia3; e “Negociação do Flamengo com a Amazon envolve dobrar valor de patrocínio”, de Rodrigo Mattos4.

São duas perspectivas diferentes sobre o tema. Maia retrata as ações de mercado da Amazon com seu produto de OTT “Prime Video”, incluindo aí a aquisição de direitos de transmissão de eventos esportivos em outros países para testar a viabilidade econômica do streaming ao vivo. Lembra-se que na internet quem vinha fazendo transmissões assim eram aplicativos específicos (DAZN) ou mídias sociais (Facebook e Twitter), com as plataformas de audiovisual focando em séries, filmes e reality shows. Outro fato importante informado por Maia é as contratações de empregados do Grupo Globo para pensar a produção nessa entrada no Brasil.

Já Mattos foca no que está em discussão neste momento entre clube e empresa, apenas o patrocínio máster na camisa, considerando os contratos em vigor sobre transmissão de futebol no país, em que só há espaço de negociação para produção de séries nos bastidores, a exemplo da que será lançada sobre a participação do clube carioca no Mundial de Clubes FIFA 2020.

Mudanças na concorrência

Começando com a concorrência, pesquisadores brasileiros da Economia Política da Comunicação (EPC) usam produções do pesquisador Mário Luiz Possas. Num de seus artigos, o autor cita os seguintes fatores responsáveis pela transformação da estrutura de mercados frente a efeitos da concorrência: o ritmo interno de acumulação de lucros destinados à expansão; o grau de concentração do mercado e os seus determinantes; a possibilidade de mudança nas formas de concorrência, especialmente dada através do progresso técnico; e, por fim, uma maior facilidade em expansão a partir do aprimoramento tecnológico, com a vinculação com outras indústrias, sendo parte de um conglomerado empresarial ou não, e com a economia em conjunto (POSSAS, 1987). São esses fatores que farão parte da nossa análise.

Como diversos estudos que aplicam esta perspectiva aos estudos de concorrência na produção infocomunicacional brasileira demonstram, o Grupo Globo atuou tanto nas barreiras de entrada político-institucionais, definindo limites legais para atuação de concorrentes; quando nas barreiras estético-produtivas, criando padrões de produtos culturais em diversos setores (da TV aberta ao cinema).

Com o avanço das ferramentas da internet, buscou atuar também no streaming, não vendendo conteúdos para outras plataformas que iam surgindo – mesmo no auge do Netflix como agente isolado no setor – e desenvolvendo a sua própria plataforma, configurada atualmente no Globoplay. No futebol, o Premiere FC migrou da assinatura exclusiva via distribuidora de TV fechada para uma opção individual para plataformas móveis, em 2018.

Antes disso, no mercado brasileiro, o Esporte Interativo havia criado o EI+Plus, em 2012, quando estava na fase de empresa nacional pequena que apostava em conteúdos esportivos que sobravam e no que era possível de se conquistar recursos a partir de aprimoramentos tecnológicos, tentando gerar o mercado que ficaria isolada como líder (SANTOS; BOLAÑO, 2017).

Foi justamente o Esporte Interativo, após a aquisição pelo grupo Turner (braço esportivo do conglomerado Warner Media, de propriedade da AT&T), que conseguiu mexer com os direitos do Campeonato Brasileiro de Futebol, após o Grupo Globo adiar uma disputa real sobre os direitos deste torneio nos dois contratos assinados de forma individual pelos clubes (2012-2015, 2015-2018). Mas isso se deu apenas depois de ter se tornado uma das empresas de um grande conglomerado empresarial transnacional.

Considere-se ainda que nos últimos anos vimos a entrada da DAZN no país, plataforma específica para streaming esportivo; e a aquisição pelo Facebook de direitos de transmissão de jogos da UEFA Champions League e da Libertadores5. Ou seja, finalmente a exibição de jogos na internet virou uma plataforma importante de financiamento, lado a lado com o Grupo Globo, inclusive, pagando recursos semelhantes ao da TV aberta no contrato do Campeonato Brasileiro de 2019 a 2024.

É este contexto que atiçou especialmente a torcida do Flamengo quanto a uma possível mudança de cenário na transmissão esportiva no Brasil.

Possibilidades futuras e a legislação

Mas é preciso entender que, como afirma Mattos, a Amazon está ciente de que a questão da transmissão não é para agora, podendo futuramente facilitar o acordo de outros produtos. Até porque os contratos vigentes no Brasileiro são longos, até 2024, enquanto o próprio Grupo Globo está se remodelando desde o final do ano passado para concorrer com os novos agentes de telecomunicações. Pode ser o tempo de o grupo brasileiro se estabilizar ou dar errado – como foi na disputa das distribuidoras de TV fechada do final dos anos 1990 e início da década de 2000.

A Lei do Esporte (9.615/1998) ainda que trate no Art. 42 como “direito de arena” – mudança realizada em 2011 –, refere-se à prerrogativa exclusiva dos clubes de negociar a exibição de seus jogos, mas “por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem”. Portanto, no Brasil a negociação para transmitir uma partida deve ocorrer com os dois clubes participantes, não apenas do mandante.

Ou seja, não adiantaria o Flamengo ter acordo para o Prime Video para transmissão na internet se o seu adversário não tiver acordo com o detentor do direito de transmissão das partidas dos adverários. Um exemplo prático do quanto isso é necessário é que no ano passado o clube vendeu alguns jogos para transmissão em Portugal, afinal o técnico Jorge Jesus é português, mas não conseguiu fazer isso em partidas em que o adversário não quis – considerando que não havia acordo coletivo para transmissão internacional.

Há no Senado um projeto de Lei Geral do Esporte (PLS n. 68/2017) que, dentre tantas outras coisas, define que o “direito de arena” seria apenas para o mandante. No cenário deste projeto de lei ser aprovado e nas condições que foi proposto, pois a única ementa apresentada não trata disso, o mercado como um todo mudaria, pois uma barreira político-institucional cairia.

Mas é importante citar que há discussão no Congresso sobre como situar na legislação as transmissões por ferramentas da internet, se podem ou não ser consideradas “serviço de acesso condicionado a pagamento” e, consequentemente, entrar nos limites impostos pela respectiva lei (Lei n. 12.485/2011).

Outro limite possível vem da Lei do Esporte (Lei n. 9.615/1998), em mudança ocorrida em 2003, após o Vasco ser campeão brasileiro de 2000 com a TV Globo exibindo a logomarca do SBT na camisa da equipe carioca. Há proibição de patrocínio de quem tem concessão, permissão ou autorização de radiodifusão ou TV fechada. O PSL 68/2017 incluiria empresas de internet e até blogs nessa proibição. Assim, por exemplo, sob dois novos entendimentos legais a Amazon não poderia ser patrocinadora de um clube de futebol.

Outras considerações

Discutir se o modelo de “direito de arena” é ou não o ideal, e para quem, ficará para outro momento. Mas minha avaliação é a mesma de outros textos. Falta os clubes se mexerem para além do individualismo, de maneira que o esporte possa crescer e se mostrar mais competitivo frente à concorrência europeia, especialmente.

No final do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol” (SANTOS, 2019), uma das minhas críticas é que os clubes não entenderam que podem negociar por plataforma, perdendo em 2019, inclusive, algumas fontes de receita que o Grupo Globo preferiu não administrar.

O último contrato para o principal torneio de futebol do país, graças a Turner, mudou um pouco isso, mas bem pouco mesmo. A Globo jogou melhor com a maioria. Mas enquanto Palmeiras e Athletico se deram bem financeiramente, quem subiu sem contrato em 2020 vai usar a mesma estratégia para poder ganhar mais e ter maior visibilidade.

Além disso, como citamos no livro, as discussões nos órgãos de concorrência sobre o tema, incluindo aqui no Brasil, propõem que a duração do contrato deveria ser de 3 anos justamente para que não se perca recursos em casos de novas entradas de empresas no mercado ou novas plataformas. Aqui assinaram por 5 anos.

Entende-se, claro que boa parte dos clubes brasileiros atuam no emergencial, no desespero de dívidas que se avolumam. Quem poderia fazer o que o Palmeiras fez no ano passado? Sem jogo exibido por algumas rodadas no principal torneio nacional. O Flamengo pode não ganhar os 18 milhões da transmissão do Carioca, os outros 3 do Rio não – por sinal, o contrato desse estadual foi assinado por 8 anos, só o Flamengo foi o único a fechar por 3.

Ainda que venham surgindo recentemente boatos sobre uma nova liga de clubes brasileiros, após o fim do Clube dos 13 em 2011, o caminho recente vem sendo mais de atuação individual, com os que ganham mais conseguindo ainda mais; que uma distribuição mais equilibrada, o que só se daria com negociação coletiva, algo presente nos modelos ideais quanto ao tema (Premier League, Bundesliga, Copa do Brasil, entre outros).

A aposta de alguns setores políticos e do futebol está na permissão de investimento por grupos financeiros a partir da empresarização plena de um clube. Mas há outros caminhos possíveis e uma longa discussão pública que precisa ser aberta.

Referências usadas

POSSAS, Mário Luiz. Marx e os fundamentos da dinâmica econômica capitalista. Revista de Economia Política, v. 4, n. 3, p. 63-84, jul.-set.1984.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Curitiba: Appris, 2009.

SANTOS, Anderson David Gomes dos; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Las estrategias de mercado de Esporte Interativo: regionalización y capital extranjero en la televisión brasileña. Chasqui – Revista Latinoamericana de Comunicación, n. 133, p. 283-396, dez.-mar. 2017.

1 Professor da UFAL, doutorando em Comunicação na UnB, presidente da Ulepicc-Brasil e autor do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol”.

2 Escrevi sobre isso em texto no Ludopédio, onde, por sinal, irá o texto sobre a empresarização do futebol brasileiro: https://www.ludopedio.com.br/autores/andersonsantos/

3 Disponível em: <https://blogdojuca.uol.com.br/2020/03/a-tensao-entre-flamengo-e-globo-tem-nome-amazon/>. Acesso em: 12 mar. 2020.

4 Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2020/03/11/negociacao-do-flamengo-com-a-amazon-envolve-dobrar-valor-de-patrocinio.htm>. Acesso em: 12 mar. 2020.

5 Para saber mais sobre streaming, leia texto recente de nossa autoria no site Comunicação e Esporte, disponível em: < https://comunicacaoeesporte.com/2019/10/17/qual-o-estagio-das-transmissoes-de-futebol-no-brasil/>. Acesso em: 12 mar. 2020.

As consequências de “uma escolha difícil”: jornalismo em tempos de bolsonarismo

Carlos Figueiredo(1)

O editorial da última quinta-feira (20/02) do Estado de São Paulo(2) traz todo seu descontentamento com o comportamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Segundo a opinião do jornal, o chefe do executivo federal já teria superado a muito todos os limites do decoro e do desrespeito às instituições democráticas. Trata-se de uma compreensível reação aos ataques sexistas à Patrícia de Campos Mello, jornalista da Folha de São Paulo. Reação repetida por praticamente todos os conglomerados de mídia, exceções feitas ao SBT e à Record.

A hipótese de que Bolsonaro e seus aliados passaram todos os limites do que é aceitável em país que deveria ser regido pelo Estado democrático de direito é eivado de grande hipocrisia. Esses limites já não existem há muito tempo. O atual presidente vem atacando as instituições desde a época em que era um deputado inexpressivo e folclórico. Atirou ofensas ao público LGBT, quilombolas e feministas, afirmou ter usado dinheiro do auxílo-moradia para “comer gente” e sentiu-se à vontade para bradar que metralharia adversários políticos durante a campanha presidencial.

Contudo rememorar as agressões bolsonaristas, em um mero exercício de denuncismo, é repetir o que os grandes conglomerados de mídia já estão fazendo, ou seja, mostrar apenas a aparência do fenômeno e não sua essência. A ascensão política da extrema-direita é a expressão política, no Brasil, da atual crise da forma-capital, que vai se espraiando para as demais formas sociais como o Estado e a comunicação.

Neste espaço, vamos tratar apenas da cobertura midiática dispensada ao Bolsonarismo a partir do marco teórico da Economia Política da Comunicação. Logo o cerne da nossa análise é o trabalho do jornalista, subsumido e subordinado ao capital. Começaremos com uma breve análise do trabalho jornalístico no interior de conglomerados midiáticos para depois discutirmos como os grandes conglomerados de comunicação cobrem o bolsonarismo.

JORNALISMO E TRABALHO
A partir do capitalismo monopolista e a consequente ascensão da indústria cultural, esta assume duas funções essenciais para o funcionamento do sistema capitalista: a função propaganda, responsável por realizar as mediações entre Estado e os cidadãos, e a função publicidade cujo objetivo é construir mediações entre o mercado e os consumidores(3).

Como a natureza da comunicação em democracias liberais é de natureza persuasiva, uma terceira função se faz necessária, a função programa. Esta terceira função é responsável por introduzir elementos do cotidiano e da cultura popular no interior da estrutura mediadora. Essas mediações são realizadas por trabalhadores intelectuais como jornalistas, roteiristas, atores, músicos, cinegrafistas etc.

O trabalho do jornalista, que é o centro de nossa análise, é difícil de ser submetido a movimentos repetitivos, como no caso da fábrica fordista, ou de ser substituído por máquinas ou inteligência artificial, sofrer o processo de subsunção real. Nesse caso, a saída das empresas jornalísticas foi criar um conjunto de rotinas, procedimentos técnicos e éticos para evitar a idiossincrasia no material jornalístico, ou seja, diminuir o fator subjetivo na produção noticiosa(4).

BOLSONARO E O CAMPO JORNALÍSTICO
Estava claro, em 2018, que a primeira opção do capital, incluindo o capital midiático; seria Geraldo Alckmin (PMDB), mas sua candidatura não decolou. Enquanto isso, Bolsonaro, ex-estatista de direita, acenou para o mercado com a indicação do ultraliberal Paulo guedes como ministro da economia. É interessante notar a inflexão do discurso midiático na tentativa de normalizar Bolsonaro à medida que ficava claro que a candidatura tucana era, na verdade, um voo de galinha.

Os meios de comunicação, através do trabalho dos jornalistas, atuam na difusão ideológica basicamente como gerenciadores de consensos e das suas fronteiras(5). Não se trata de uma mera reprodução ideológica do discurso hegemônico. Há um conjunto de procedimentos textuais e de apuração, visando credibilizar um discurso que tende a defender ideias hegemônicas (função propaganda) ao mesmo tempo em que se pretende objetivo e imparcial. Os critérios de seleção, a ideologia do profissionalismo, apesar de suas contradições internas, tendem à defesa do status quo.

Na cobertura econômica e política de canais como Globonews ou mesmo em editoriais ou nas reportagens e textos noticiosos de jornais como a Folha de São Paulo há uma tentativa de separar a política econômica da pauta ideológica conservadora e obscurantista do governo Bolsonaro. Algumas críticas são feitas porque a verborragia presidencial atrapalharia o crescimento do PIB nacional(6).

As falas ultraliberais do Paulo Guedes, por exemplo, e as promessas de reformas passam a ser colocadas na esfera do consenso, como algo racional e para o “bem” de todos. Esse tema não chega sequer a ser objeto de discussão. Alguns absurdos ditos por Bolsonaro são colocados na esfera da controvérsia legítima, ou seja, o famoso procedimento de “ouvir os dois lados”.

Entretanto para colocar determinadas falas do presidente na esfera da controvérsia legítima era necessário expandir demais suas fronteiras, e é o que foi feito. Uma das táticas é defender sub-repticiamente que o cargo de presidente domesticaria o furor de seu discurso de extrema-direita.

A última esfera do consenso é aquela que determina o que não pode ser dito sobre hipótese alguma e não pode ser tolerado posto que é antidemocrático e/ou irracional. Também houve um alargamento dessa esfera pela imprensa, no caso, a partir do tratamento que é dado à oposição a Bolsonaro.

Política econômicas reformistas anticíclicas e heterodoxas foram colocadas no campo do radicalismo e consideradas populismo de esquerda no mesmo patamar, só que no extremo oposto, de falas preconceituosas e antidemocráticas do candidato Bolsonaro como a defesa da ditadura e todo tipo de ofensas a minorias. É a tese da “escolha difícil”(6) do Estadão, a escolha entre o Fascismo e um partido de esquerda cujo único extremismo do qual pode ser acusado é o extremo reformismo.

Esse gerenciamento das fronteiras do consenso pela grande mídia continuou com a separação fictícia entre os núcleos ideológico, econômico e militar do governo. Os dois últimos mereciam todo apoio enquanto o núcleo ideológico só atrapalharia Guedes e seus assessores segundo a imprensa.

O grande engano da imprensa é não entender que esse novo tipo de fascismo depende desse tipo de propaganda tosca e do choque para implementar suas reformas liberais e “economicamente racionais”. Está tudo interligado, e as últimas falas preconceituosas do Ministro Paulo Guedes dão mostras disso.

A imprensa vem sendo ataca por Bolsonaro há muito tempo, mas as reformas econômicas ultraliberais vem sendo tocadas. Todavia não seriam aceitas de outra forma que não fosse pelo emprego dessa propaganda que deixa todos envolvidos e polariza a sociedade de forma extrema. Atacar uma jornalista de forma machista, fazer insinuações sexuais sobre o trabalho dessa mesma profissional, atacar os conglomerados midiáticos está no script do presidente, pois só agindo “irracionalmente” Bolsonaro pode aplicar a racionalidade administrativa do mercado materializada nas reformas.

Logo essa indignação porque “agora” Bolsonaro passou dos limites é uma completa hipocrisia, mas há também um parco entendimento dos jornalistas sobre a conjuntura de como as reformas são tocadas e como a própria imprensa nos ajudou a chegar até aqui.

Os jornalistas pensam que a dinâmica do fluxo da comunicação segue a mesma dinâmica observada no século XX. Os grandes conglomerados de comunicação ainda possuem papel central, mas a extrema-direita consegue fornecer uma espécie de informação moderadora em relação aos conteúdos da grande mídia, uma propaganda que filtra as notícias para os seguidores desse grupo político.

Talvez daqui a cinquenta anos, em meio a uma convulsão popular em que os manifestantes lembrem a atitude covarde dos meios de comunicação, algum dos conglomerados midiáticos brasileiros venha a pedir desculpa pelo apoio às reformas do governo. Muitas vezes a história se repete como uma nova farsa sem sequer ter sido tragédia.

(1) Jornalista, Doutor em Sociologia. Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos.

(2) DESCONTROLE Total. O Estado de São Paulo. 20 fev 2020. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,descontrole-total,70003203740

(3) BOLAÑO, César. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Pólis, 2000.

(4) FIGUEIREDO, Carlos.. Jornalismo e Economia Política da Comunicação: Elementos para uma Teoria Crítica do Jornalismo. ÂNCORA – REVISTA LATINO-AMERICANA DE JORNALISMO, v. 6, p. 12-28, 2019.

(5) HALLIN, Daniel. We Keep America in the Top of the World. Television Journalism and the Public Sphere. London: Routledge, 1994.

(6) ESCOLHA muito difícil, Uma. O Estado de São Paulo. 08 out 2018. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-escolha-muito-dificil,70002538118

(7) BORDUNA na Carta. Folha de São Paulo. 5 set 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/09/borduna-na-carta.shtml

Uma “raça em extinção” que resiste

Por Manoel Dourado Bastos*

Todo apoio à greve dos jornalistas da Folha de Londrina

Os jornalistas remanescentes da Folha de Londrina paralisaram suas atividades no dia 13 de janeiro de 2020 para exigir o pagamento integral do décimo terceiro e dos salários de dezembro de 2019, além de exigirem mais transparência nas contas da empresa. Trata-se de mais um capítulo de um processo que se arrasta desde novembro, quando a empresa anunciou que demitiria 25% dos jornalistas no bojo de uma pretensa reestruturação do jornal, que contou também com a adoção de um novo formato de publicação. A greve dos jornalistas da Folha de Londrina conseguiu 100% de adesão e se mostra como uma reação adequada dos trabalhadores diante da ineficácia dos gestores da empresa.

Assombrados com a crescente e vertiginosa queda de vendas avulsas e assinaturas, bem como com novas diretrizes impostas pelo governo Bolsonaro, que eliminou por Medida Provisória em agosto de 2019 a obrigatoriedade da publicação em jornais impressos dos balanços das empresas de capital aberto, os gestores da Folha de Londrina passaram a atirar para todos os lados. Ainda impactados com a medida provisória de Bolsonaro, que justificou a ação ironicamente  como uma retribuição ao que classificou como ataques a ele da “imprensa de papel”, os gestores da empresa promoveram uma campanha publicitária em favor da liberdade de imprensa, que foi alvo de diversos ataques dos apoiadores do presidente, cuja candidatura foi apoiada em diversas colunas do jornal.

Ao que tudo indica a empresa não conseguiu grandes resultados financeiros com sua ação publicitária, de maneira que partiu para cima da folha de pagamentos. Ao anunciar o plano de demissão de dez jornalistas, contrariando o acordo coletivo de trabalho que classifica uma ação dessa monta como demissão em massa, os gestores da Folha de Londrina justificaram o processo afirmando que, assim, viabilizariam o pagamento em dia do pessoal. Encontraram onze jornalistas dispostos a serem demitidos, desgastados física e espiritualmente com as condições cada vez mais degradantes e as ameaças ao futuro profissional.

A empresa, contudo, não cumpriu com o acordo demissional, protelando o pagamento da verba rescisória em dez parcelas a partir de abril de 2020. Além disso, deixou os jornalistas remanescentes sem 13º e pagou, no início de janeiro, apenas um terço do salário de dezembro. Os jornalistas reagiram e cobraram o pagamento integral dos salários e do 13º, sob a ameaça de uma paralisação. Diante dessa ação assertiva dos jornalistas, a empresa depositou mais 25% dos salários, o que não foi suficiente para debelar a paralisação. A exceção de editores e estagiários, a totalidade dos jornalistas da Folha de Londrina não trabalharam no dia 13 de janeiro.

Nestes termos, a crise da Folha de Londrina se apresenta como um problema trabalhista, mas sabemos que o buraco é mais embaixo. A Folha é o último jornal impresso da cidade. Esta, que não é uma situação circunscrita a Londrina, se tornou mote enviesado dos constantes golpes desferidos por Bolsonaro à imprensa. Já na primeira semana de 2020, Bolsonaro atacou novamente os jornalistas, ao acusá-los de mentir e desinformar, apontando-os como uma “raça em extinção” a ser vinculada ao Ibama. O sarcasmo presidencial tem afinidade com o ataque dos gestores da Folha de Londrina à folha de pagamentos, visto que ambos despejam sobre os jornalistas problemas originados em outra ordem. O problema trabalhista desta “raça em extinção” é, na verdade, uma crise do jornalismo como forma social da comunicação.

A fuga crescente de anúncios e recursos do bolo publicitário, o extensivo uso de novos meios para a propaganda dos agentes políticos e o interesse do público pelos meios digitais fazem com que o jornal impresso perca seu posto como um mediador decisivo. O fechamento de jornais impressos ou a migração para plataformas digitais é acontecimento corriqueiro. Infelizmente, os jornalistas se tornam a vítima preferencial desse processo. Não bastasse o medo diante das demissões frequentes dos jornais impressos em falência, a degradação das condições laborais nas redações de publicações online é outro fator de ataque aos jornalistas.

Enfrentar essa crise passa longe de ataques aos jornalistas e a precarização de suas atividades. É verdade que as funções cumpridas pelo jornal impresso têm encontrado novos meios que, contudo, são expressões de mudanças estruturais da forma social da comunicação. Ao reagirem, por sua vez, os jornalistas encontram dificuldades em buscar tão somente o retorno às estruturas formais da comunicação em ruína. Tornados alvos principais da crise, se reconhecem como trabalhadores e, com isso, podem passar a exigir um mundo completamente novo. Assim, a “raça em extinção” encontra aquilo que devia ser seu fundamento, a liberdade de escrever os acontecimentos.

Todo apoio à greve dos jornalistas da Folha de Londrina!

* Professor do Mestrado em Comunicação  da Universidade Estadual de Londrina e dos cursos de Especialização em Comunicação Popular e Comunitária e Especialização em Comunicação e Cultura Política da mesma universidade.

 

O monopólio de transmissão da Globo na transmissão da Copa do Mundo FIFA Rússia 2018

 

 

Por Anderson David Gomes dos Santos*

 

Depois de duas Copas do Mundo FIFA transmitidas em TV aberta pela Rede Globo e pela Band, a emissora da família Marinho voltou a transmitir com exclusividade um mundial de futebol masculino. O problema do mercado se apresentou de forma transparente a quem acompanhou o torneio no Brasil, “refém” da voz de Galvão Bueno nos jogos da seleção canarinha – num país com cada vez mais pessoas “pistolas”.

Para além de gostar ou não do narrador principal da Globo desde 1992, a questão a ser discutida vai além dele. É preciso entender a partir de dois pontos de análise: a construção da liderança do Grupo Globo no mercado comunicacional brasileiro; e a negociação dos direitos de transmissão dos torneios FIFA.

Liderança da Globo
O Grupo Globo se constitui a partir do jornal O Globo na década de 1920, parte para as rádios nos anos 1940, consolidando-se especialmente a partir da rede de emissoras de televisão desde 1965, que se aproveitou da conjuntura político-econômica para impor barreiras de liderança num momento de profissionalização da Indústria Cultural brasileira.

Consideramos aqui a importância do grupo, para além da rede de TVs, porque ele se constituiu com pulverização de mídias em que atua, o que é importante em termos de mercado para a aquisição de alguns serviços/programas e contratação de trabalhadores, pois tem mais possibilidades de atuação ou espalhamento e teste de programação. É assim, por exemplo, que esportes diferentes têm seus direitos de transmissão contratados pelo grupo. Os eventos podem ser exibidos em algum domingo no Esporte Espetacular; por algum dos canais SporTV; pelo Globoesporte.com, ou por todas essas plataformas.

A iniciativa da Rede Record de concorrer com a Globo a partir de 2007 nos direitos de eventos esportivos, adquirindo temporariamente alguns eventos de judô, no processo de transmissão exclusiva dos Jogos Olímpicos de verão e inverno, foi algo temporário justamente porque a oferta multiplataforma garante transmissão desses esportes, independentemente de grade de programação e, o principal, alguma visibilidade em horários líderes de audiência na TV aberta.

De lá para cá, a concorrência com outras plataformas foi intensificada no século XXI, o que Valério Brittos denominou de Fase da Multiplicidade da Oferta. A resposta do Grupo Globo foi se reposicionar nos diferentes setores da Indústria Cultural, priorizando a liderança na produção audiovisual, independente do meio de comunicação em que exibe seus programas, como comprova a campanha publicitária atual, que retrata a preocupação com os “100 milhões de uns”.

As concorrentes na TV aberta não acompanharam as mudanças, tendo dificuldade, inclusive, de conseguir algo a mais para estarem presentes na TV fechada. Há um impacto econômico que afeta a maioria delas. É também devido a isso que na TV aberta a Rede Globo passou a exibir jogos de futebol de forma exclusiva, pois não havia sublicenciada que pudesse pagar para transmiti-los – e se a Record pode, a Globo não repassa, devido ao histórico de disputa da década anterior.

Relação Globo-FIFA
Mas no caso dos torneios da FIFA, parte dessa história não conta. A entidade internacional proprietária do football association tem uma espécie de “parceria histórica” com a líder do mercado comunicacional brasileiro, termo que normalmente a Globo usa para justificar sua pretensa superioridade quando depende de algo para além do econômico.

Não há qualquer processo licitatório quanto aos principais torneios de seleções da FIFA para a exibição no Brasil. Para além da possibilidade de conseguir mais dinheiro, é preciso considerar que o resultado das investigações do FBI, que vieram à tona a partir de 2015, indicaram que os dirigentes das duas confederações das Américas usavam as negociações com empresas de marketing esportivo e os grupos de mídia omo objeto de corrupção.

Para se ter ideia, ainda em 2012, o Grupo Globo já anunciava deter os direitos de transmissão audiovisual das Copas do Mundo FIFA de 2014, 2018 e 2022 para todas as mídias, mas sem divulgação de valores. Não houve sequer a preocupação, no caso daqui, em analisar se haveria propostas específicas para transmissões em outros meios, separando os pacotes de transmissão, como outros torneios fazem e a maioria dos tribunais em prol da concorrência defendem.

Esse é um ponto importante de se relatar a partir de outros casos recentes. A criação dos canais Fox Sports em 2012 fez com que o Grupo Globo precisasse entrar em um acordo para seguir transmitindo a Taça Libertadores da América nos canais SporTV e ter mais opções de escolha na TV aberta, já que o grupo Fox Sports adquiriu há mais de duas décadas os direitos do torneio para a América Latina. Em troca, os canais da Newscorp ganharam o direito de exibir as duas edições seguintes de Copa do Mundo FIFA e a Copa do Brasil, além de ficar com VTs de jogos do Campeonato Brasileiro. Produtos até então transmitidos com exclusividade pelo SporTV (Globosat) na TV fechada.

Outro exemplo a ser lembrado é o anúncio da desistência da Rede Globo em concorrer pelo pacote de TV aberta do triênio 2018-2019 a 2020-2021 dos jogos da Liga do Campeões da Europa, principal torneio interclubes do mundo, cujo resultado foi anunciado durante a realização da Copa. A desistência se deu porque, apesar de bons resultados da audiência, a transmissão pela Globo dava destaque a um conteúdo cujo poder de escolha no Brasil é dos canais Esporte Interativo (Turner/WarnerMedia), levando público para o concorrente na TV fechada e que transmite os jogos num serviço de streaming (EI Plus). Quem ficou com o pacote de exibição gratuita foi o Facebook, que luta com Amazon e Twitter por uma série de direitos de transmissão de eventos esportivos no mundo, mas com atuação até aqui restrita a ligas de outros esportes no Brasil.

Assim, o problema de só ouvirmos a narração de Galvão Bueno na TV aberta é mais uma questão de mercado que de meritocracia ou qualquer coisa do tipo. Inclusive, podemos apontar como resultado dessa Copa do Mundo FIFA Rússia 2018 o grande destaque a Luís Roberto, que adaptou sua forma de transmitir e mobilizou muitos elogios na empresa e nas mídias sociais; além da contratação de Gustavo Villani, vindo do Fox Sports. Ambos podem ser pensados como substitutos de um Galvão Bueno, de 67 anos, cuja voz precisa ser cada vez mais poupada.

PS: Importante destacar que esta Copa teve pela primeira vez no Brasil toda uma equipe de transmissão de mulheres para partida do Brasil, obra da Fox Sports. Além disso, a demarcação da resistência das jornalistas esportivas brasileiras por respeito ao trabalho exercido. Se o machismo está incrustado na nossa sociedade, especialmente nas esferas do trabalho, o jornalismo esportivo acrescenta situações ainda mais absurdas. Esse tema mereceria outro texto, por isso tratar aqui apenas rapidamente, mas sem deixar de apresentá-los como legados desta Copa do Mundo FIFA.

* Anderson David Gomes dos Santos é professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), doutorando em Comunicação na Universidade de Brasília e membro do grupo de pesquisa OBSCOM-CEPOS.

Mídia no Brasil: legislação permissiva e ineficaz

Por Daniel Fonseca* (O Povo)

O Brasil tem uma frágil legislação sobre a propriedade da mídia, o que é agravado pela falta de transparência e de controle social, o que torna quase letra morta o marco regulatório da radiodifusão, do jornalismo impresso e da Internet (portais). Esses temas são o foco da pesquisa de Monitoramento de Propriedade da Mídia (quemcontrolaamidia.org.br).

Algumas das maiores demandas, hoje, são a atualização de normas, o controle de informações e a fiscalização do cumprimento das leis. Essas lacunas comprometem a responsabilização e a penalização no caso de desobediência às exigências previstas em relação à propriedade, à garantia da pluralidade e da diversidade e ao respeito aos direitos humanos.

A própria Constituição veda monopólio e oligopólio, mas não teve qualquer efeito prático nos últimos 30 anos. Ainda que exista um capítulo específico sobre Comunicação, grande parte não foi sequer regulamentada. Outra porção, mesmo tendo lei ordinária correspondente, não tem consequência efetiva.

O Decreto-Lei 236/1967 limita em 10 as outorgas para TV aberta no País, mas isso é ignorado em acordos privados de “afiliadas”. No rádio aberto, existem limites para cada modalidade, em geral também desrespeitados.

O Código de 1962 segue vigente como a legislação central da radiodifusão. As leis das Telecomunicações (1997) e da TV Paga (2011) não chegaram a alterar os alicerces em que atuam os maiores grupos de mídia.

Há, ainda, deficiência na aplicação das legislações sobre as verbas de propaganda estatais, os horários “gratuitos” por partidos políticos e mesmo o relevante setor das telecomunicações (telefonia, Internet e TV paga). Estas atividades também influenciam a propriedade das demais mídias.

Para completar, o Estado, como ente regulador, também tem sido incapaz em manter-se “equidistante” diante daqueles agentes que deveria fiscalizar e sancionar. Cerca de 40 congressistas são radiodifusores, mantendo a contaminação de interesses que caracteriza o chamado coronelismo eletrônico.

Por isso, é sintomático, mas nada surpreendente, que venham do “mercado” (externo) as maiores ameaças às empresas nacionais: gigantes como Google, Facebook, Amazon e AT&T têm feito até a Globo se mexer. 

Talvez tenha chegado o momento de a estrutura das comunicações mudar no Brasil, mas o cenário que se aponta pode ser ainda pior do que o atual.

Doutor em Comunicação (UFRJ), é jornalista e funcionário da UFC

A Globo não é boba. Mas continua racista…

Por Paulo Victor Melo* (Revista Fórum)

Há muito, a Rede Globo está atenta às críticas que vêm recebendo da sociedade. São tanto críticas organizadas por movimentos sociais quanto manifestações mais dispersas, por pequenos grupos, redes sociais, etc.

Junho de 2013, por exemplo, foi um momento importantíssimo para colocar a Globo – e o conjunto da mídia privado-comercial – em xeque. Quem não se lembra de milhares de pessoas, especialmente jovens, nas portas das sedes locais da emissora gritando: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”?

Em sintonia com esse grito, uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, em agosto de 2013 (no calor das manifestações), apontou o seguinte: 43% dos entrevistados afirmaram não se reconhecer na TV e 25% se veem retratados negativamente. Ou seja, 68% não está satisfeita como é (ou como não é) representada pela mídia privado-comercial brasileira.

A mesma pesquisa apresentou também os seguintes números: 54% dos entrevistados acreditam que conteúdos de violência ou humilhação de homossexuais ou negros, por exemplo, não deveriam ter espaço na TV brasileira. 50% também não admitem programas de “humor” que ridicularizam grupos socialmente vulneráveis.

Frente a esses dados, a uma perceptível ampliação da crítica às suas estratégias de manipulação e a uma queda de audiência, a Globo também não se comporta como boba.

É por isso que recentemente a emissora lançou a peça institucional ‘100 milhões de uns’, em que explicitamente busca dialogar com grupos que reivindicam a diversidade e com os que a criticam. Na peça institucional, a Globo chega a afirmar: “Uns gostam da gente. Uns dizem que não”.

É também por esses motivos que a Globo afastou (até que as coisas sejam ‘esclarecidas’, como está na nota divulgada pela emissora) William Waack, após divulgação de seus comentários racistas em um estúdio da TV. Algo que poucos estão atentando sobre o episódio: os comentários de Waack foram em 2016, quando entraria ao ar para cobrir a eleição de seu amigo Trump. Ou seja, a Globo, que provavelmente já tinha ciência do comentário, nada fez até que o vídeo – um ano depois – chegasse ao grande público.

Na mesma nota em que anuncia o afastamento de Waack, a Globo diz que é “visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações…”

Então, se boba a Globo não é, mesmo com o afastamento de Waack e apesar da afirmação acima, racista ela continua sendo…

Vejamos.

1. Racismo não é somente quando alguém, utilizando uma concessão pública, faz comentário como o de William Waack.

2. Na TV, racismo se expressa também a) na sub-representação do segmento populacional negro; b) na forma como mulheres negras são apresentadas ou retratadas; c) na oposição a políticas públicas afirmativas; d) no silenciamento de demandas e movimentos sociais que pautam a questão racial; e) no reforço de estereótipos por meio de conteúdos da programação.

3. Sobre a sub-representação, basta vermos o espaço ocupado para homens e mulheres negros/as nos telejornais da Globo.

4. Na forma como as mulheres negras são retratadas, não vale questionar o que simboliza a Globeleza, em geral mulher negra jovem, seminua, como estratégia de divulgação de um carnaval a ser comercializado? Sobre esse tema, recomendo o texto da Jarid Arraes: https://www.revistaforum.com.br/2015/01/15/racismo-gente-ve-na-globo/

5. Também sobre as mulheres negras, quem não lembra o nome da novela em que Thais Araújo era protagonista? Da Cor do Pecado! Por que a cor do ‘pecado’ (como algo proibido, ruim) é a pele preta, Rede Globo?

6. Na oposição a políticas afirmativas, a Globo esquece que Ali Kamel, um dos chefões da emissora, escreveu um livro em que se coloca contrário às cotas raciais?

7. No silenciamento de lutas sociais, por que a Globo ignorou tanto as violências do Estado contra Rafael Braga, negro, jovem e pobre? Ou por que a Globo não deu tanta repercussão ao caso de Amarildo?

8. Ainda sobre o silenciamento, como não questionar o pouco espaço dado pela Globo às denúncias contra as manifestações de intolerância contra as religiões de matriz afro?

9. No reforço de estereótipos, não já cansamos dos mesmos papéis ocupados pelos negros e negras nas telenovelas? Também não é repetitivo o ideal de beleza branca que a Globo constrói, por exemplo, por meio de seus programas?

Por tudo isso e por tanto mais, não temos dúvida: a Globo, assim como o conjunto da mídia privado-comercial brasileira, é racista. E é também machista e LGBTfóbica.

O afastamento de Waack, apesar de ser uma medida importante, não pode virar uma cortina de fumaça.

Esse cenário só será alterado quando tivermos uma legislação de comunicação que promova real diversidade e pluralismo, que garanta participação social na fiscalização das emissoras e que coíba manifestações de desrespeito, intolerância e ódio contra os segmentos vulnerabilizados da população.

*Paulo Victor Melo, jornalista. Mestre em Comunicação e Sociedade pela UFS. Doutorando em Comunicação e Política na UFBA. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Obscom-Cepos (Comunicação, Economia Política e Sociedade) e do Centro de Comunicação, Cidadania e Democracia da UFBA.

A profecia da indústria fonográfica

Por Edson Ramos de Oliveira Costa*

Os últimos dados divulgados pela Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em Inglês) confirmam que o setor oficialmente voltou a ser lucrativo. Em todo o mundo, foi registrado um aumento de 10%. Nada super empolgante: enquanto os anos 1990 foram do maior crescimento na história do setor, os anos 2000 foram de queda ininterrupta (DIAS, 2010).

Os anos 2010 vinham registrando uma recuperação tímida e, embora não se compare às margens de lucro da última década do século XX, os dados de 2016 mostram que a recuperação está consolidada. Mas, além dos lucros, um fator muito importante é: a consolidação de uma forma específica de distribuição e consumo.

Ninguém ainda tinha dúvidas de que o mercado digital, em detrimento dos discos físicos, era o caminho de recuperação do mercado de música gravada – a proporção hoje é de 70% digital e 30% físico. Porém, pela primeira vez o mercado de downloads de música registrou queda, e já de 34%. Programas como o iTunes, baseado em download, mostram assim sinais de enfraquecimento. A consolidação do digital se deve ao streaming – que cresceu 121%.

A profecia está neste fato: há muito já se sabia que o modelo on demand era o mais viável, não apenas para o mercado de música, mas para outros setores da indústria cultural. E isso mostra que a arena digital não necessariamente caminha para democratizar a produção e o consumo da cultura.

Lopes (2008) já demonstrava que a grande indústria, cada vez mais, passa a depender da lógica rentista – investidores criam celeiros com talentos que desenvolvem inovação tecnológica, com o objetivo que o lucro de pelo menos um traga o retorno de toda a empreitada. Assim, o trabalhador que desenvolve os produtos e as inovações ganha a aparência de sócio mas, por não deter celeiros e perspectiva panorâmica do mercado, esse trabalhador assume proporcionalmente muito mais riscos.

Pinto (2011) observa que esse mesmo comportamento do mercado financeiro passa nortear a indústria fonográfica – há artistas, com aparência de sócio, que chega a dever dinheiro às gravadoras quando os lucros de um projeto não atendem às expectativas.

Outro fator: um produto intelectual tem alto custo de produção e, podendo ser digitalizado, seu custo de armazenamento e reprodução é praticamente nulo. Pinto (2011) compara com uma concessionária de ferrovia: custo alto de produção, e custo de reprodução impraticável. Logo, seja numa ferrovia ou numa música, o lucro depende de alugar o uso, sem que o usuário se torne realmente o dono.

Essa é exatamente a proposta do streaming, o novo modelo hegemônico da indústria fonográfica. A profecia se cumpriu. Algumas notícias do mercado só confirmam isso. O Google¹ anunciou que vai unificar suas duas plataformas de streaming (Play Música e YouTube Red) com o objetivo de atrair mais assinantes. Já a Apple² descontinuou os aparelhos iPod Nano e iPod Shuffle, restando no mercado apenas o iPod Touch.

Lançado em 2001, o primeiro iPod marcou a transição da indústria fonográfica para o mercado digital, mas, assim como as versões nano e shuffle, era baseado nos downloads pelo iTunes. Com a criação dos smartphones, o iPod foi perdendo sua razão de existir, e os dados da IFPI confirmam que os celulares inteligentes são a plataforma principal para consumir música. Assim, essas decisões da Apple materializam os números do mercado e as tendências já apontadas pelas teorias – o iPod Touch até continua, mas ele é quase um smartphone e permite o consumo de streaming pelo Apple Music.

É perceptível que a grande indústria do entretenimento não apenas sobreviveu, como encontra formas de recuperar os lucros, relativizando a noção de que a digitalização sempre democratiza a cultura. Porém, Lopes (2008) aponta um limite para esse processo: a informação , para virar mercadoria e dar lucro, precisa ser restringida e apropriada; porém a informação, para gerar valor, precisa circular livremente pela comunidade de desenvolvedores. Uma vez que o capitalismo depende da geração de valor, e da concretização desse em forma de lucro, há aí um impasse. Ele será superado e a lógica da grande indústria será mantida? Aguarda-se nova profecia.

Referências Bibliográficas:

DIAS, Márcia Tosta. Indústria Fonográfica: a reinvenção de um negócio. In BOLAÑO, César. GOLIN, Cida. BRITTOS, Valério. Economia da arte e da cultura. São Paulo: Itaú Cultural; São Leopoldo: Cepos/Unisinos; Porto Alegre: PPGCOM/UFRGS; São Cristóvão: Obscom/UFS, 2010.

IFPI. Music consumer Insight Report 2016. Disponível em: <http://www.ifpi.org/downloads/Music-Consumer-Insight-Report-2016.pdf>. Acesso em: 25 jan. 2017.

LOPES, Ruy Sardinha. Informação, Conhecimento e Valor. São Paulo: Radical Livros, 2008.

PINTO, José Paulo Guedes. No ritmo do capital: indústria fonográfica e subsunção do trabalho criativo antes e depois do MP3. São Paulo, 2011. Tese (doutorado em Economia). Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2011.

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Notas

¹ Fonte: <https://tecnoblog.net/219902/youtube-red-google-play-music/>. Acessado em 30/07/2017.
² Fonte: <https://tecnoblog.net/219934/fim-ipod-shuffle-nano/>. Acessado em 30/07/2017.

* Edson Ramos Oliveira da Costa é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e integrante do Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM), da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

A Globo não sufocará, mais uma vez, a realização de eleições diretas

Por Helena Martins* (publicado originalmente no site da Insurgência)

Valendo-se do poder de quem participou ativamente da arquitetura do golpe que levou Michel Temer à Presidência da República, o Grupo Globo entrou em campanha e cobra publicamente a saída de Temer do cargo. A efetivação de eleições indiretas está sendo apresentada em diversas reportagens como “solução” para a crise política e foi abertamente defendida por meio de editorial do jornal O Globo desta sexta-feira, 19.

A mudança é apresentada como forma de garantir as condições políticas para que sejam efetivadas as reformas que atentam contra direitos essenciais da classe trabalhadora brasileira. O texto não poderia ser mais nítido: “Este jornal apoiou desde o primeiro instante o projeto reformista do presidente Michel Temer. Acreditou e acredita que, mais do que dele, o projeto é dos brasileiros, porque somente ele fará o Brasil encontrar o caminho do crescimento, fundamental para o bem-estar de todos os brasileiros. […] Nenhum cidadão, cônscio das obrigações da cidadania, pode deixar de reconhecer que o presidente perdeu as condições morais, éticas, políticas e administrativas para continuar governando o Brasil. […] Quanto mais rapidamente esse novo governo estiver instalado, de acordo com o que determina a Constituição, tanto melhor”. (https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial-renuncia-do-presidente-21365443#ixzz4hZlC1REc)

A postura é semelhante àquela adotada há mais de trinta anos, quando a mesma Globo boicotou a campanha “Diretas já”. À época, a emissora evitou cobrir as mobilizações que vinham ocorrendo em todo o País em defesa de eleições diretas. A própria empresa reconhece a postura política então adotada: “A Globo registrou esses comícios pelas Diretas nos seus telejornais locais. Naquele primeiro momento, as manifestações não entraram nos noticiários de rede por decisão de Roberto Marinho. O presidente das Organizações Globo temia que uma ampla cobertura da televisão pudesse se tornar um fator de inquietação nacional”, diz o texto disponível no portal Memória Globo (http://memoriaglobo.globo.com/erros/diretas-ja.htm). Como os que viveram aquele período devem lembrar bem, o Jornal Nacional chegou ao ponto de noticiar o grande comício de 25 de janeiro de 1984 como se fosse uma comemoração do aniversário de São Paulo. O resultado nós conhecemos: a eleição indireta de Tancredo Neves, continuidade da saída controlada e conservadora da Ditadura Miliar.

Recentemente, em especial que marcou a passagem dos 50 anos de jornalismo da emissora, o caso foi tratado na TV pela primeira vez “como um erro”. “Essa reportagem provocou muita polêmica ao longo de muitos anos porque, embora ela falasse do comício das Diretas, o texto que introduzia a reportagem, lido pelo apresentador na época, não falava em comício pelas Diretas”, disse William Bonner no programa. O jornalista acrescentou: “Isso aí foi visto durante muitos anos como uma tentativa da Globo de esconder as Diretas e, obviamente, depois de muitos anos também, foi reconhecido como um erro”. “Obviamente” a empresa tentou simplificar o caso e seus impactos para a democracia brasileira. O uso da expressão “foi visto” e a abordagem rápida do problema no especial ilustram isso.

Mais uma vez, o principal conglomerado midiático brasileiro atua para definir os rumos do País por cima, por meio de conchavos entre os integrantes da elite econômico-política. Não se trata de um apego às regras constitucionais, aliás tão desconsideradas pela própria Globo em relação ao que a Carta Magna estabelece sobre a organização do sistema de comunicação, ao próprio impeachment e às reformas que têm sido efetivadas, a exemplo da inconstitucional PEC 241/55, que fixou teto para gastos públicos em áreas essenciais e que foi ardorosamente defendida pela mídia. Trata-se de excluir a população das decisões e negar a ela o legítimo direito de exercer a sua soberania.

Agora, é a vez de fazermos justiça com o passado e garantirmos a saída de Temer e mudanças imediatas no carcomido sistema político, por meio de eleições diretas para presidente, deputados e senadores. Esse é um passo fundamental para a revogação das medidas aprovadas contra a vontade da imensa parte da população, como atestam todas as pesquisas realizadas no último período. Para isso, é preciso manter a ocupação das ruas e garantir, por meio do trabalho de base e da comunicação contra-hegemônica, que a população saiba que outros caminhos podem ser seguidos.

É tempo de insurgência!

* Helena Martins é jornalista, Jornalista, doutoranda em Comunicação Social, integrante do Intervozes e militante da Insurgência.

Ponderações sobre a transmissão de futebol na Internet

Por Anderson David Gomes dos Santos*

Atlético-PR e Coritiba estão fazendo a final do Campeonato Paranaense, mas sem transmissão em TV aberta, apenas pelos canais dos clubes no Facebook e no Youtube. Houve, para os jogos da primeira fase (veja o que escrevi sobre na Caros Amigos), muito texto que deu ode ao processo como indicativo de fim do “monopólio da Globo” sobre os eventos de futebol. Mas que “novo” modelo é esse?

Constituídos há 30 anos sob uma base que se estreitou para a dependência financeira, os direitos de transmissão dos clubes em torneios de futebol deveriam ser vendidos de acordo com a maior valorização de seu produto, podendo ser para um ou mais agentes, desde que com a garantia de visibilidade à marca do time e às que ele expõe. Nesses termos, diferentes decisões em favor da concorrência vêm se dando desde os anos 1990, quando se acirra a disputa pelo produto futebol televisionado no mundo, que partem da perspectiva de que ainda que o produto seja o campeonato como um todo, quanto mais e melhor receberem todos os clubes, melhor a competitividade nas partidas e mais emoção a ser “vendida” ao torcedor, que também é o telespectador, mercadoria audiência a ser negociada aos anunciantes pelos grupos midiáticos ou que adquire o produto diretamente se considerado o pay-per-view.

Assim, antes de qualquer discussão sobre o “fim do monopólio” global ou de endeusamento das ferramentas (privadas) de Internet, entender que as ferramentas digitais podem ser mais um nicho a ser explorado, e não apenas vender num pacote global é a principal mudança que a decisão da dupla Atletiba representa. Vale citar que do Termo de Cessação de Conduta sobre a venda de direitos de transmissão de eventos de futebol no Brasil, de 2010, o Conselho Administrativo de Direito Econômico (CADE) deixou claro que os clubes têm autonomia de vender seus direitos de imagem de forma isolada e não em associação/federação, se assim o quiserem, desde que os contratos sejam separados por meio de comunicação. Então nada impede que deixem a internet para acordos mais promissores – inclusive, os acordos de alguns clubes na TV fechada com o Esporte Interativo, a partir de 2019, não devem impedir que a Rede Globo fique com os direitos na transmissão gratuita. Trata-se, portanto, de algo que beneficia os clubes enquanto agentes de mercado em competição, não necessariamente no que se refere ao processo de democratização da comunicação. Perceba-se que em nenhum momento os presidentes dos clubes usam a palavra “acesso” ao conteúdo como motivo.

No caso paranaense, se o Grupo Globo oferecesse o valor pretendido só aos dois times – e não ao Paraná, que se beneficiou por ter sido o único grande paranaense com acordo com a RPCTV, tendo mais jogos transmitidos em TV aberta –, não haveria qualquer preocupação em enfrentá-lo. Isso ocorreu por ter sido um dos poucos estaduais desvalorizado por afiliada da Globo e pelas mudanças, graças ao SporTV, da divisão de cotas para a Primeira Liga, que fez os times paranaenses saírem do torneio no início do ano ao reproduzirem o modelo do Campeonato Brasileiro, beneficiando especialmente o Flamengo.  Ainda que neste caso ambos tenham assinado acordo em TV fechada para o Campeonato Brasileiro a partir de 2019 com os canais Esporte Interativo/Turner – que emprestaram uma equipe de narração para as finais do Paranaense -, o objetivo é financeiro e de maior número de jogos transmitidos.

Há ainda outra ponderação necessária. Os clubes podem usar esse filão para vender seus jogos a partir de outras temporadas, modelo que já existe na internet, tanto por serviços próprios quanto pelos canais no Youtube – que lançou este ano sua “versão Netflix” nos Estados Unidos, em parceria com importantes grupos de radiodifusão para retransmiti-los em tempo real. Podemos citar a Copa do Rei (Espanha) e a Copa América de 2015, que o Youtube exibia desde que se comprasse os jogos e/ou torneios completos para se ver por streaming – no caso da segunda, a opção era bloqueada para o Brasil, dado que o Grupo Globo compra o pacote todo de direitos, incluindo a internet. Vale lembrar ainda que o modelo de transmissão no Facebook, primeira transmissão de futebol nesta mídia no mundo, foi um dos pilares de base para o Esporte Interativo criar seu serviço de streaming, o EI Plus.

Como o supracitado caso do Esporte Interativo aponta, transmitir na internet não é inédito no Brasil. O próprio E+I vem disponibilizando no Youtube só o áudio de jogos de quem assinou contrato com ele como uma forma de propaganda – vide Santos 1X2 Palmeiras no Paulistão deste ano e do clássico Bavi do Nordestão, que ocorreu no último domingo. Algumas TVs de federações reproduzem os jogos não exibidos na TV aberta dos Estaduais nestes canais, casos da Federação Alagoana de Futebol, desde o ano passado – que também exibiu no final de semana o primeiro jogo da final do Alagoano, mesmo com transmissão da afiliada da Globo, com quase 20 mil visualizações –, e da Federação Paulista de Futebol, na Copinha e das divisões inferiores. Além de ocorrerem transmissões de partidas de base e de jogos-treino nos canais de Youtube de clubes como Palmeiras e São Paulo. Nestes casos, trata-se de mais um elemento de divulgação, para além de placas publicitárias e camisas (incluindo a da arbitragem para os Estaduais), para se arranjar patrocinadores ao torneio e para expor a marca nos clubes.

O último Atletiba teve ainda mais audiência que o primeiro. Os canais de Facebook de Atlético e Coritiba tiveram, respectivamente, 612 mil e 444 mil visualizações; enquanto no Facebook o número foi de 310 mil e 239,5 mil, o que representa um total de mais de 1,5 milhão de visualizações, com amplitude de divulgação para além do Paraná. Além disso, representa politicamente uma tentativa de ser protagonista também frente à Federação Paranaense, um dos grandes problemas persistentes dos clubes de futebol no Brasil. Ambos tentam lucrar (incluindo aí as placas em torno do gramado) mais do que os supostos R$ 2 milhões que seriam pagos pelos direitos de transmissão do torneio por inteiro apenas com os dois jogos das finais.

De toda forma, sempre é importante ressaltar que são os direitos de transmissão de eventos esportivos que vêm propiciando ampla discussão sobre a estrutura do mercado comunicacional brasileiro, especialmente nos últimos 10 anos. Cada caso que aparece expõe para um público ainda maior as deficiências de devida regulação neste setor econômico e o quanto isto pode prejudicar um conjunto maior de pessoas, incluindo aí a própria expansão da mercantilização sobre o futebol. Cabe aos clubes entenderem seu protagonismo neste processo. Atlético e Coritiba estão dando passos quanto a isso.

* Anderson David Gomes dos Santos é professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), jornalista graduado em Comunicação Social pela UFAL e mestre em Ciências da Comunicação pela UNISINOS, membro do grupo de pesquisa OBSCOM/CEPOS.