Por Carine Felkl Prevedello*
Os recentes impactos provocados, especialmente na América Latina, pela instituição da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA) na Argentina, conhecida como “Lei de Meios”, envolvem, para além das alternativas apresentadas ao histórico embate entre os monopólios de mídia e a defesa do interesse público, a definição de espaços estratégicos para o fortalecimento de novos canais de comunicação com preservação da diversidade de atores e de conteúdo.
No Brasil, é possível afirmar que a legislação mais progressista para a democratização da Comunicação completou 20 anos em 2015: a Lei n° 8977, que instituiu a TV a cabo, determinou a criação dos canais de utilização gratuita, originando os canais legislativos, judiciários, comunitários e universitários, o que amplia o grupo em torno das TVs educativas já estabelecidas no país desde a década de 1960. A criação posterior da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2007, inspirada no modelo da BBC de Londres, representa outro marco na estruturação de um sistema público de Comunicação, com a gestão por meio de Conselho Curador, mas manutenção do financiamento estatal e dificuldades permanentes para a distribuição e circulação do canal em todo o país. Entretanto, ainda que possam ser considerados avanços em relação às legislações anteriores, a permanência do Código Brasileiro de Radiodifusão, de 1962, mesmo diante da norma de complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal, prevista na Constituição de 1988, abriga a proteção às concessões de radiodifusão negociadas politicamente, favorecendo a manutenção dos oligopólios de mídia e a falta de meios de fiscalização, acompanhamento e interferência pública sobre a característica da programação.
Outra limitação do caso brasileiro reside no fato de que os canais de utilização gratuita permanecem restritos à TV a cabo, enquanto os canais comerciais, de propriedade privada e finalidade lucrativa, dominam o espectro aberto de televisão no Brasil, que hoje atinge mais de 95% dos domicílios. O processo de transição para a TV digital, que atinge as emissoras de sinal aberto, iniciado nos anos 2000, apesar de apresentar uma oportunidade para a revisão da dicotomia característica do sistema de televisão no país, parece, até o momento, colaborar para a manutenção dos privilégios dos canais privados, em contraposição ao fortalecimento dos canais públicos. Está garantida, pela legislação que institui o Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), a migração direta dos canais comerciais abertos para a TV Digital, enquanto os canais públicos terão de dividir espaços compartilhados, sem previsão de ampliação das concessões para os sistemas público e estatal.
Nesse sentido, é importante reconhecer que a Lei de Meios argentina representa uma vitória consistente em duas frentes. Em primeiro lugar, estabelece diretrizes para impedir a manutenção e formação de oligopólios que concentrem a propriedade de veículos de comunicação – com o claro objetivo de atingir diretamente o conglomerado Clarín, francamente opositor ao governo de Cristina Kirchner -, e em segunda instância determina a concessão de uma série de licenças para operação de canais públicos e comunitários, sem necessidade de outorga ou revisão, atendendo ao objetivo de diversificar, regionalizar e democratizar o acesso à produção e distribuição de conteúdo audiovisual.
Entre sus objetivos principales se destacan la inclusión de diversos sectores en la gestión de medios (estatales, comerciales y sin fines de lucro) y los límites a la concentración de la propiedad, expresados en los topes en cantidades de licencias (24 para operar TV cable, 10 para radiodifusión abierta), en el dominio del mercado (35 %) y en la prohibición de propiedad cruzada, tanto entre el sector de telecomunicaciones y el audiovisual como para la operación de TV abierta y de pago en la misma zona de cobertura. (MARINO, 2014).
Entre os setores onde observamos uma das mudanças mais significativas, está o reconhecimento das universidades públicas como polos potenciais para produção e diversificação do conteúdo audiovisual. Pela Lei de Meios argentina, cada uma das 39 universidades ligadas a 22 províncias recebeu um canal de frequência aberta e outro para emissora de rádio na sua localização central, com permissão para autorizar frequências adicionais, ou seja, emissoras afiliadas. Antes disso, o campo de TVs públicas, estatais ou não-estatais, no país estava limitado em um canal público nacional, 11 canais públicos provinciais, dois universitários e um outorgado à Igreja católica.
No Brasil, desde a instituição da Lei da TV a cabo, foram instituídos pelo menos 46 polos de produção audiovisual distribuídos em 22 instituições do interior dos estados, e outros 24 nas capitais (PREVEDELLO, 2013). Entretanto, esse mapa não representa a estruturação de canais universitários, ou mesmo TVs em operação, permanecendo alguns como produtores periféricos de conteúdo, outros com divisão de um canal local e inserção mínima de programação própria, e ainda os casos de uso do canal com finalidades comerciais. A desigualdade da distribuição regional também representa um entrave a ser superado: na região Norte, a maior em extensão territorial no país, onde se encontram os povos indígenas, há apenas um canal autorizado na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A ausência de projetos e recursos para incentivo à produção universitária, assim como ausência de definição de diretrizes para as características da programação são fatores relacionados às distorções e ao baixo aproveitamento desses canais como polos de produção audiovisual diversificada.
Uma das exigências da Lei de Meios para as emissoras universitárias estabelece a necessidade de 60% de produção própria e de representatividade regional e comunitária entre os produtores de conteúdo. Outra questão relevante a ser considerada é o fato de que as concessões para as emissoras universitárias argentinas estão destinadas aos canais abertos, com massiva penetração (embora na Argentina as transmissões a cabo já alcancem 70% da população), enquanto no Brasil permanecem restritas ao espectro pago, com alcance de apenas 30% dos domicílios brasileiros, segundo a Anatel.
A partir de la división del país en nueve regiones o polos, se constituyó un sistema federal en red donde las Universidades Nacionales nuclearon a los actores del sector audiovisual televisivo de cada comunidad para conformar Nodos. Los Nodos Audiovisuales fueron pensados como sistemas productivos locales integrados por cooperativas, organizaciones sociales afines al sector audiovisual, productores independientes, televisoras y organismos públicos locales. En los Nodos, las Universidades Nacionales y los actores audiovisuales del medio local trabajaron juntos para desarrollar y consolidar la producción televisiva de las distintas regiones de nuestro país. (MONJE, ZANOTTI, 2015).
Entretanto, passados seis anos de aprovação da Lei de Meios, os debates atuais permanecem semelhantes às dificuldades brasileiras, em termos de implementação das diretrizes e financiamento do sistema. Há editais e programas de incentivo público em andamento, mas com impactos pouco consolidados na transformação da programação televisiva argentina. Essa perspectiva – da dificuldade de consolidação das determinações da legislação – está presente na crítica mais feroz feita à Lei de Meios, debate atual no contexto de eleições presidenciais, crítica que está também relacionada à expectativa pela superação dos oligopólios de mídia, representados principalmente pelo grupo Clarín, mas hoje também, de acordo com os partidos opositores a Kirchner, pelo aparato estatal. Consistiriam dois grandes grupos, um oficialista e outro opositor, trabalhando segundo seus próprios interesses e sem espaço para vozes discordantes. “As corporações existiam antes e seguem existindo: a diferença é que hoje existem duas: ambas são conservadoras e tratam de defender seus interesses, não há democratização de fato”, afirma o candidato do Movimento Social de Trabalhadores (MST), a extrema esquerda argentina, Alejandro Bodart.
Esta crítica, ancorada em um debate político que defende a compreensão de que “a lei nasceu velha”, reflete uma posição de exigência de parte da sociedade argentina que não impede, entretanto, que outros pontos de vista reconheçam a centralidade da Lei de Meios como um marco para a discussão da democratização da Comunicação na América Latina.
La LSCA debe ser comprendida como punto de partida hacia la democratización del sistema de comunicación y cultura. No es la etapa final de un proceso, sino el comienzo de un camino. Ese recorrido que apenas se inicia debería implicar cambios en la estructura y composición del sistema de medios. Además estipula una serie de condiciones que, de cumplirse, podrán modificar la oferta cultural audiovisual, los tipos de discursos y los contenidos, como apertura hacia la diversidad. (MARINO, 2015)
Uma mudança, que, pelo menos nas soluções apresentadas pela Argentina, envolve como questão primordial o reconhecimento da comunicação como bem e direito público e social, – entendimento condicional para a revisão da legislação brasileira para a TV aberta -, a exemplo da história das televisões públicas europeias, e, por outro lado, especialmente na questão audiovisual, visualiza nos polos de produção universitários um elemento central para a articulação de atores não-hegemônicos e para a regionalização e consequente diversificação da programação televisiva.
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MARINO, Santiago. Vaivén: desgranar moralejas em la Argentina de la ley audiovisual. Dossiê n°14 do Observatório Latinoamericano do Instituto de Estudos da América Latina e Caribe (IEALC). Faculdade de Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, 2014.
MONJE, Daniela; ZANOTTI, Juan Martín. Televisoras públicas universitárias argentinas: el actor emergente. Revista Lumina. Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora (MG), vol. 9, junho 2015.
PREVEDELLO, Carine. TVs universitárias público-estatais: um breve eco da pluralidade rumo à digitalização no interior do Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade do Vale do Rio do Sinos: São Leopoldo: Unisinos, 2013.
VALOR ECONÔMICO. TV por assinatura cresce 7% no Brasil em março. Disponível na internet em: <http://www.valor.com.br/ empresas/4035116/tv-por- assinatura-cresce-7-no-brasil- em-marco>. Acesso em 31/08/2015.
*Carine Felkl Prevedello é doutora em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), professora e servidora técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.