Por Irla Suellen da Costa Rocha*
Com a ampliação do conceito de cultura e das expressividades que integram este amplo guarda-chuva teórico de pesquisa, os museus tiveram a sua vez nas políticas públicas de cultura do governo federal. Pela primeira vez, enquanto política pública, estas instituições de salvaguarda do patrimônio teve elaborado um plano e uma política nacional que amparasse e ampliasse as ações no campo museal. Em arquivo disponibilizado pelo Ministério da Cultura (MINC), a Política Nacional de Museus destaca a revitalização dos museus e do patrimônio histórico nacional como uma das prioridades do Ministério da Cultura (MinC). A ampliação dos cursos de Museologia, passando pelos estímulos à construção e reforma dos museus, reestruturação do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN), o Sistema Nacional de Museus e a criação do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), são algumas das ações que os museus têm experimentado nos últimos 12 anos.
A partir de uma seleção de diversos autores elencamos alguns dos principais pontos que podem auxiliar no entendimento do que é museu, e podem ter influenciado a sua concepção dentro da agenda das políticas públicas: como instituições do seu tempo, visíveis aos seus contemporâneos e sempre servindo a causas de sua época (BRUNO, 2011); instrumento de extensão cultural, gerenciador de cultura, reflexão crítica da história exposta (SUANO, 1986); como um prolongamento da hegemonia e lugar de mediações (CURY, 2011). Partindo destes recortes conceituais, é possível observar o quanto esta instituição é provocativa de ser estudada através da perspectiva da Economia Política da Comunicação (EPC), por fazer uma abordagem crítica da sociedade por meio das relações de tensão e contradição entre as esferas da economia, da comunicação e da cultura, à medida que avança o processo no qual os produtos culturais estão cada vez submetidos à lógica do capitalismo (BRITTOS; MIGUEL, 2008).
Dentro desse viés político o MinC e o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN)¹, na Política Nacional de Museus, compreendem os museus: como práticas e processos socioculturais colocados a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento; politicamente comprometidos com a gestão democrática e participativa; voltados, museologicamente, para as ações de investigação e interpretação; registro e preservação cultural; comunicação e exposição dos testemunhos do homem e da natureza, com o objetivo de ampliar o campo das possibilidades de construção identitária e a percepção crítica acerca da realidade cultural brasileira (POLÍTICA, 2007). Nesta versão ampliada e revista do que é museu pelo IPHAN, que também é compartilhada e registrada por Chagas (1994) em seus esforços teóricos e empíricos, dois movimentos históricos dos museus brasileiros estão imbricados: a ampliação do conceito de cultura das políticas públicas e a incorporação da noção de museu do Conselho Internacional de Museus (ICOM)² e suas implicações sobre a instituição na atualidade.
Cury (2011) problematiza o museu contemporâneo como uma consequência do modo de funcionamento do hegemônico. Pontuando ainda mais a discussão sobre os museus dentro do seu próprio conceito e funcionalidade, principalmente como instituição, em sua grande maioria no Brasil ligada ao Estado. “A problemática é estrutural, ou seja, está na estrutura do que entendemos ser museu. O museu contemporâneo representa essa hegemonia e, às vezes, rende-se a alguns artifícios do massivo” (CURY, 2011, p.21). A autora ainda debate sobre o problema em delimitar a ideia do que seja o museu, e mais uma vez apresenta uma reflexão crítica e política acerca, destacando o quanto a visão hegemônica, do Estado, passa a incidir diretamente na construção da memória e do acervo salvaguardado. Vejamos:
Ideias fechadas e conclusivas são do interesse de alguma hegemonia (seja ela qual for) que prospera sobre concepções autoritárias, seja a respeito da instituição – sua natureza e papel na sociedade –, da forma como esta opera – o projeto de gestão –, ou seja, a relação que a instituição estabelece com a sociedade e a forma como manifesta seu comprometimento (CURY, 2011, p.20).
Percebe-se a partir desta breve exposição sobre a concepção do que sejam os museus que estes são instituições possíveis de reflexão sobre a atuação e o papel das Políticas Públicas de Cultura, como também da influência da Indústria Cultural. Entendo o museu como espaço de discussão política e crítica em seus assuntos correlatos, a exemplo da cultura, patrimônio, cidades, turismo e desenvolvimento. O que nos leva aos questionamentos críticos de Scheiner (1994, p. 22-23) sobre o tema:
para entender a questão dos museus no Brasil é preciso desenvolver uma reflexão sobre o próprio país, o tipo de sociedade aqui existente, as relações da sociedade brasileira com a cultura e os tipos de museus criados e mantidos por tal sociedade. É preciso, ainda, entender e analisar o que vem a ser, no país, a museologia: quem cria museus no Brasil? Quem os dirige, e como? Quem os mantém? Que relações tem o Brasil com a Museologia?
As perguntas levantadas pela autora colocam os museus no cerne da discussão sobre hegemonia e discurso, sobre o papel do Estado na seleção da museografia³ e expografia4. A EPC, através da leitura crítica da Indústria Cultural como instância mediadora, possibilita uma percepção das estratégias estabelecidas no processo de acumulação, na manutenção do sistema e, portanto, na dominação por meio da reprodução ideológica do sistema.
Retomar o conceito de indústria cultural para compreender os processos midiáticos das sociedades atuais significa ter clareza de que os produtos culturais, apesar de suas especificidades, estão cada vez mais obedecendo à lógica de produção e a distribuição de produtos e serviços para responder às necessidades de consumo. Isso significa dizer que hoje, mais do que nunca, aspectos mercadológicos estão penetrando na informação, na comunicação e na cultura (BRITTOS; MIGUEL, 2008, p.40-41).
Por fim, é interessante trazer à baila a assertiva: “o museu não trabalha com objetos, mas com problemas” (FREIRE, 2011, p. 73), que retrata o quanto a instituição museal é atravessada por problemas intrínsecos à sua composição. “O museu ordena um acervo de coisas materiais para a organização de valores e relações sociais. Portanto, expor objetos é propor questões, produzir sentidos. Isso porque os objetos não são fetiches, isto é, não têm valores imanentes. Todos os valores são criados pela sociedade e aplicados aos objetos” (FREIRE, 2011, p. 73).
É possível observar como o acervo, a exposição e a elaboração do museu estão imbricadas numa relação complexa em que as políticas culturais dão o aporte histórico, no entendimento dele enquanto instituições públicas de seu tempo justificando-se e mostrando a sua relevância (BRUNO, 2011). O que corrobora com a proposta de leitura das relações de poder e atentas às análises das condições de produção, distribuição e intercâmbio da indústria cultural (BOLAÑO; HERSCOVICI; MASTRINI, 1999).
Referências
BOLAÑO, C.; HERSCOVICI, A.; MASTRINI, G. Economia Política da Comunicação e da Cultura: uma apresentação. Disponível em:<http://encipecom.metodista.br/mediawiki/images/2/25/Cesar_Bolano2.pdf/> Acesso em: 10 maio 2015.
BRITTOS, V. C.; MIGUEL, J. Indústria cultural: conceito, especificidades e atualidade no capitalismo contemporâneo. In: BRITTOS, V. C.; CABRAL, A. (Org.) Economia política da comunicação: interfaces brasileiras. Rio de Janeiro: E-papers, 2008. p. 37-57.
BRUNO, M. C. O. Os museus servem para transgredir: um ponto de vista sobre a museologia paulista. In: Sistema Estadual de Museus – SISEM SP (Org.). Museus: o que são, para que servem? São Paulo, 2011. p. 29-42.
CHAGAS, M. Em busca do documento perdido: a problemática da construção teórica na área da documentação. Cadernos de Sociologia: revista do departamento de Museologia, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, v. 2, n. 2, p. 29-47. 1994. Disponível em: <http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/534/437>. Acesso em: 04 set. 2014.
CURY, M. X. Museus em Transição. In: Sistema Estadual de Museus – SISEM SP (Org.). Museus: o que são, para que servem? São Paulo, 2011. p. 17-28
DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F. (Org.). Conceitos-chave de Museologia. São Paulo: Comitê Brasileiro do ICOM, Pinacoteca do Estado, Secretaria de Estado da Cultura, 2013. Disponível em: <http://icom.museum/fileadmin/user_upload/pdf/Key_Concepts_of_Museology/Conceitos-ChavedeMuseologia_pt.pdf> Acesso em: 15 nov. 2015.
FRANCO, M. I. M. Processos e métodos de planejamento e gerenciamento de exposições. In: 3º Fórum Nacional de Museus. Planejamento e organização de exposições (Parte II). 2008 [Slides em Powerpoint]. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/difusaocultural/admin/artigos/arquivos/Planejamentoeorganizacaodeexposicoes2.pdf> Acesso em: 12 nov. 2015.
FREIRE, C. Dos museus e das exposições: por uma breve arqueologia do olhar. In: Museus: o que são, para que servem? Sistema Estadual de Museus – SISEM SP (Org.) Brodowski (S.P) : ACAM Portinari ; Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. São Paulo, 2011. (Coleção Museu Aberto). p. 69-78.
POLÍTICA Nacional de Museus: guia. Brasília: Ministério da Cultura, 2007. Disponível em: <http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2010/01/politica_nacional_museus.pdf>. Acesso em: 24 set. 2014.
SCHEINER, T. Sociedade, cultura, patrimônio e museus num país chamado Brasil. Apontamentos, memória e cultura. Revista do Mestrado em Administração de Centros Culturais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 14-34, 1994.
SUANO, M. O que é museu? São Paulo: Brasiliense, 1986.
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¹ Cita-se o IPHAN como parte referência do conceito de museus abordado na Política Nacional de Museus (2007), pois até 2008 era este o órgão responsável. Em janeiro de 2009, com a assinatura da Lei nº 11.906, foi estabelecida uma nova autarquia vinculada ao MinC: o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM).
² O museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com fins de estudo, educação e deleite (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 64).
³ Museografia é a área do conhecimento que estuda, projeta e define os equipamentos necessários à operação de um museu, englobando componentes expositivos, estruturas de suporte para atividades programáticas e técnicas, além de estruturas e planos de atendimento aos usuários; responde ainda pela interface com projetos complementares e sua inserção no edifício (FRANCO, 2008).
4 Expografia é a área da museografia que se ocupa da definição da linguagem e do design da exposição museológica, englobando a criação de circuitos, suportes expositivos, recursos multimeios e projeto gráfico, incluindo programação visual, diagramação de textos explicativos, imagens, legendas, além de outros recursos comunicacionais (FRANCO, 2008).
* Irla Suellen da Costa Rocha possui graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Tiradentes (2008) e em Letras/Português pela Universidade Federal de Sergipe (2014). Atualmente é mestranda em “Cultura, Economia e Políticas da Comunicação” pelo PPGCOM/UFS (2015), vinculada ao Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM/UFS) e bolsista de pesquisa pela CAPES. E-mail: irlasuellen@gmail.com.