Concentração midiática e o contexto brasileiro: antigos e novos desafios

Ana Carolina Westrup*

No Brasil, um dos cenários de maior concentração econômica está presente no sistema midiático de radiodifusão. Formado por uma lógica em que o Estado privilegiou, historicamente, a iniciativa privada na prestação destes serviços, temos a cristalização de um mercado representado por apenas cinco grupos de comunicação detendo a propriedade de 26 dos 50 veículos de maior audiência no Brasil, como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia.

Esse contexto se inicia na expansão do rádio, com o primeiro conglomerado de comunicação no Brasil: Emissoras e Diários Associados. Criado pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand com atuação até a década de 50, as Emissoras e Diários Associados possuíam mais de 36 emissoras de rádio, 34 jornais diários, 18 emissoras de televisão e várias revistas.

Em 1965, o cenário se complexifica com a entrada das empresas Globo, que já possuíam jornal O Globo, da Rio Gráfica Editora e da Rádio O Globo, e passam a investir também no mercado brasileiro de televisão, com a inauguração a TV Globo, fruto do acordo com o grupo internacional Time Life e sua expansão se dá de forma exponencial nos anos seguintes, adquirindo uma liderança de mercado frente a audiência em praticamente todos os seus produtos televisivos. Com a adoção de estratégias de qualificação de público, os programas globais, principalmente os ligados ao padrão “horário nobre” atingem recordes de espectadores. Em exemplo figura o Jornal Nacional, que ainda na década de 80 já registrava mais de 70 milhões de pessoas consumindo o seu conteúdo.

Aliado a esse modelo de expansão do setor de radiodifusão comercial, o caso brasileiro ainda possui a especificidade de um número significativo de grupos políticos detentores de concessões públicas de radiodifusão. Em 2007, o Intervozes publicou uma revista com informações importantes sobre como se deu as concessões de rádio e TV, anos antes da Constituição de 1988.

O início se deu nos últimos momentos do governo do General João Batista de Figueiredo, através de um processo de barganha política em que a principal moeda de troca foram as concessões e outorgas de rádio e TV. Durante todo o ano de 1983 foram outorgadas 80 concessões públicas de rádio e TV, nos últimos dois meses do Governo Figueiredo, e praticamente às vésperas da convocação da Assembleia Constituinte, foram autorizadas 91 concessões, a grande maioria relacionada a setores conservadores e grandes grupos econômicos e políticos.

Essa prática de concessão de outorgas como elemento de negociação para apoios políticos tem continuidade no governo de José Sarney. O presidente e seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, distribuíram 1.028 concessões de TV e rádio até a promulgação da Constituição Federal. Em troca, os parlamentares aprovaram cinco anos de mandato para Sarney. Esse contexto relacionado aos políticos detentores de concessão de radiodifusão foi denunciado pela campanha Coronéis da Mídia, marcando a Semana pela Democratização das Comunicações em 2014, ação que se seguiu nos anos posteriores.

Já em 1989, um ator importante entra no sistema dos medias no Brasil. Com a aquisição da emissora Record, o Bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) com sua estratégia de evangelização eletrônica, consolida a emissora como segunda maior rede de televisão no país, em 2008, com 17% da audiência nacional entre 7h da manhã e meia noite, já competindo a audiência com a Globo em telenovelas, programas de auditório e transmissões de jogos. Da mesma forma que o Grupo Globo, o conglomerado Record possui gráficas, rádios, s emissoras de TV, os portais de notícias, como o R7 e, em 2018, a plataforma de streaming, Play Plus. Apoiando o governo de Jair Bolsonaro, como também governos anteriores, à esquerda e à direita, Edir Macedo obteve apoios significativos em verbas publicitárias, abocanhando cerca de R$ 10, 3 milhões de reais. O Grupo Record não está sozinho: nove dos 50 veículos de maior audiência no Brasil hoje pertencem a lideranças e igrejas religiosas cristãs (evangélicas e católicas).

Os ataques à comunicação pública

No outro lado da moeda, a comunicação pública vive, atualmente, sobre um intenso ataque. O caso da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é um bom exemplo para essa afirmação. Em maio de 2007, seguindo o princípio constitucional da complementaridade entre os sistemas público, privado e Estatal, os contornos da Empresa Brasil de Comunicação foram estruturados a partir das discussões do 1º Fórum de TVs Públicas, organizado pelo Ministério da Cultura, na época comandado pelo Ministro Gilberto Gil.

Entretanto, desde 2016 a EBC está em profundo ataque, desde a cassação do Conselho Curador, um espaço fundamental para a participação da sociedade civil sobre as diretrizes da empresa pública, culminando com a tentativa de privatização da EBC, incluída em março deste ano no Plano de Desestatização do governo Bolsonaro.

O que vemos, portanto, é a consolidação de uma concentração midiática, de forma vertical e horizontal, que tem como consequência a baixa percepção da população sobre esse serviço como direito. Ou seja, essa conformação de mercado trouxe consigo esse distanciamento do caráter público e educativo do setor da radiodifusão e isso se reflete quando discutimos a agenda de regulação dos meios de comunicação, em que os próprios meios, que estão em uma condição privilegiada no debate público, trazem a narrativa de censura à imprensa para distorcer a necessidade de um debate sobre a democratização da mídia brasileira.

Em 2014, entidades que atuam pela democratização da comunicação, por meio da Campanha para Expressar a Liberdade, elaboraram o projeto de lei de iniciativa popular da comunicação social eletrônica, que ficou mais conhecido por Lei da Mídia Democrática, e traz uma série de propostas para regulamentar os meios de comunicação no Brasil. O projeto aponta caminhos para promoção da pluralidade de ideias, fomento à cultura nacional, de maneira diversa e plural, universalização dos serviços essenciais de comunicação e participação popular na definição das políticas públicas de comunicação, entre outros pontos.

Entretanto, a ausência de vontade política e um trabalho incessante de distorção dos meios de comunicação tradicionais sobre o tema nos abriga sob um marco regulatório para a radiodifusão das décadas de 1930 e 1960, uma estagnação que expressa a vontade comercial e política dos empresários do setor.

Monopólios Digitais

Em que pese os dados ainda muito presentes de exclusão digital no Brasil e as discrepâncias de acesso, a TIC domicílios de 2020 revelou que o Brasil tem 152 milhões de usuários de Internet, o que corresponde a 81% da população do país com 10 anos ou mais. Assistimos, portanto, à disseminação da Internet como um novo lócus de realização das mais diversas atividades humanas, dos negócios às interações sociais.

Mais que espaço ou suporte, trata-se de um sistema sociotécnico composto não apenas por tecnologias (redes, protocolos, dispositivos, programas), mas por instituições, pessoas, regras. A internet, portanto, é, fundamentalmente, um espaço de poder em disputa, no qual operam diversos grupos (governos, organismos multilaterais, empresas transnacionais e locais, organizações da sociedade civil), que buscam agir de acordo com seus interesses e que adotam estratégias de negócio que afetam constantemente a coletividade.

Se, antes, a rede foi pensada como um espaço aberto, de trocas igualitárias e promessas democratizantes, na última década, o que tem ocorrido é a crescente concentração da internet em torno de plataformas digitais e uma crescente inserção destas na dinâmica capitalista atual.

Em 2018, o Intervozes lançou a pesquisa Monopólios Digitais: Concentração e Diversidade na Internet, em que analisou especificamente a camada de aplicações e conteúdos. A pesquisa apontou que as grandes plataformas, como Google e Facebook, constituem monopólios digitais que são caracterizados por: (1) forte domínio de um nicho de mercado; (2) grande número de clientes, sejam eles pagos ou não; (3) operação em escala global; (4) espraiamento para outros segmentos para além do nicho original; (5) atividades intensivas em dados; (6) controle de um ecossistema de agentes que desenvolvem serviços e bens mediados pelas suas plataformas e atividades; (7) estratégias de aquisição ou controle acionário de possíveis concorrentes ou agentes do mercado.

Em síntese, as plataformas digitais se firmam na mesma lógica de disputa de atenção que a radiodifusão, obtendo os seus recursos com o mercado publicitário, entretanto, com um método mais sofisticado e complexo do que qualificar a audiência como estratégia concorrencial a partir do uso dos dados pessoais dos usuários.

A complexidade não se dá somente no modelo de funcionamento, mas pela própria natureza desses monopólios em si. O Google, por exemplo, representa uma das gigantes transnacionais, as Big Techs, empresas que concentram bilhões de pessoas em suas arquiteturas e lucram valores inimagináveis. A marca Google, por exemplo, vale atualmente 323 bilhões de dólares. Lidar com esse cenário de expansão desse modelo de negócios que interfere na autonomia do usuário é mais um desafio na agenda do direito humano à comunicação.

O Brasil possui duas legislações importantes que impactam no modelo de funcionamento das plataformas no país, o Marco Civil da Internet (MCI) – Lei n° 12.965/2014 e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018). Ambas são consideradas como avanços significativos para a defesa da integralidade da rede.

O MCI foi resultado de um longo e democrático processo participativo, a partir de um modelo de regulação que se expressa na (a) da garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; (b) da proteção da privacidade dos dados pessoais; (c) da preservação e garantia da neutralidade de rede; (d) do direito de acesso à Internet a todos; (e) da preservação da natureza participativa da rede.

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é uma referência em termos de proteção à privacidade e à liberdade de expressão no Brasil, sancionada em agosto de 2018 e em vigor desde setembro de 2020, a LGPD tem como objetivo o de “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” – conforme determinado em seu Artigo 1º.

Entretanto, as duas legislações se encontram em ataque. Como exemplo dessa afirmação, está a recente Medida Provisória nº 1068, de 06 de setembro de 2021, editada pelo governo Bolsonaro, que altera o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei de Direitos Autorais (LDA). Em síntese, a medida estabelece regras para que as plataformas sejam obrigadas a manter no ar todo o conteúdo que o Executivo não considera passível de remoção com “justa causa” sem uma ordem judicial, como mostra nota da Coalizão Direitos na Rede.

Da mesma forma a LGPD, que desde 2020, tem a sua Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão responsável pela fiscalização e aplicação da norma, hoje totalmente atrelada ao Executivo e nas mãos de militares, em um momento chave para aplicação dessa legislação, visto que durante os primeiros anos de trabalho da ANPD serão formulados parâmetros e diretrizes para orientação da aplicação da LGPD, ou seja, as decisões a serem tomadas pela Autoridade agora definirão como a proteção de dados se dará no futuro.

Observamos, assim, que, no Brasil, há um desafio acumulado de concentração midiática, da radiodifusão ao avanço das plataformas. Uma agenda que precisa ser tratada com a seriedade devida em prol de um aspecto fundamental da nossa democracia – a liberdade de expressão – , em que todos participem, como nos ensinou Paulo Freire, de um ciclo positivo de comunicação.

*Ana Carolina Westrup é doutoranda em sociologia na UFS, pesquisadora do OBSCOM-CEPOS e do LEEP-UFS e bolsista CNPq em Tecnologia Social

**Imagem: reprodução

As manifestações em Cuba e a sofisticação dos golpes de Estado

Foto: Alexandre Meneghini/Reuters

Gisele Borges

Doutoranda pela Sorbonne Paris Nord – França.

Pesquisadora associada da Universidade de Dublin -Irlanda.

Introdução

Nos últimos meses, a imprensa internacional buscou enquadrar os protestos em Cuba como uma suposta “Primavera Cubana”, sendo considerada a maior ação contra o governo desde os protestos do Maleconazo [1], em 1994. Contudo, enquadrar os protestos da atualidade como “primavera” implica em ter uma avaliação positiva desses movimentos quando, na verdade, eles serviram na imensa maioria das vezes (falo das chamadas primaveras árabes [2] e dos protestos digitais [3]) como álibi para a ação da ofensiva capitalista visando a derrubada de governos, a destruição nacional e a implantação de regimes favoráveis ao imperialismo americano. Neste sentido, nos parece importante analisar como a existência das inovações trazidas pela Internet e pelas plataformas digitais apresentam formas mais sofisticadas de manipulação e de ação dos Estados Unidos contra a soberania dos países. Para isso, faremos uma análise voltada à Economia Política da Comunicação e da Internet a partir da perspectiva de “redes sociais” de José van Dijck e Thomas Poell (2013) e do conceito de informação de César Bolaño (2000). Em seguida, abordaremos as mudanças políticas e sociais de Cuba à luz da Contentious Politics de Tilly e Tarrow (2007). No intuito de observar como essas dinâmicas se sobrepuseram na construção dos protestos digitais e na ação do imperialismo americano. 

Contexto histórico 

Antes de analisar as manifestações à luz da EPC e da Contentious Politics  é preciso reforçar o aspecto histórico e considerar que o governo cubano possui um modelo político diferenciado, marcado pela Revolução de 1959 e pelo isolamento político após a queda da União Soviética. Esses elementos construíram no país um modelo político centralizado, que atua na resistência à ofensiva do capitalismo global e da ideologia neoliberal.

Neste contexto de disputa ideológica, para manter o modelo socialista, o país passou por uma série de mudanças nos anos 2000 aprofundadas pelo afastamento do líder da revolução Fidel Castro e pela ascensão de Raúl Castro à presidência em 2013. Com Raúl no poder, os modelos econômico e social de Cuba passaram por reformas que trouxeram modernização à estrutura administrativa, a implementação Internet residencial em 2015 e permitiram a entrada de empresas de tecnologia como o Google e o Youtube no país em 2018.

Além dos processos de adaptações políticas e econômicas criados para contornar o embargo econômico imposto pelos EUA, o país viu sua população crescer e a juventude se distanciar dos ideais da revolução. Mesmo que existam movimentos de juventude (estudantil) favoráveis ao socialismo e à preservação das conquistas da revolução. Ainda nos anos 1990, surgiram movimentos sociais ligados ao debate de gênero, etnia, orientação sexual etc. Ao longo dos anos, esses movimentos conseguiram criar formas de ação coletiva que modificaram a relação com o Estado a ponto de articular demandas e criar políticas públicas. 

Em 2016, apesar do serviço de Internet ser precário, surgiram os primeiros youtubers da ilha, os quais realizaram, no ano seguinte, o encontro de youtubers cubanos (Vanessa Souza Oliveira, 2019; Willian Casagrande Fusaro, 2021). Com a mudança na Constituição em 2019, seguida do acesso à internet 3G, ampliou-se a presença dos  ativistas on-line revigorando o debate em torno de direitos sociais na esfera pública. Se, por um lado, a flexibilização da estrutura política e econômica permitiu mais diálogo e circulação de informação, por outro, possibilitou a personalização de conteúdo e a manipulação de informação nas plataformas de redes sociais. Cabe ressaltar que tanto o conteúdo produzido pelos influencers cubanos, quanto as pautas identitárias, se transformaram em armas do imperialismo contra a revolução cubana que os utilizavam por meio de mensagens extremistas divulgadas nas plataformas digitais, no intuito de fomentar a intolerância em nome da liberdade de expressão.

Economia digital e a diplomacia americana 

Ao analisar as manifestações em Cuba na perspectiva da Economia Política da Comunicação e da Internet, podemos inferir que todas as tentativas do povo de ampliar o acesso a Internet e a entrada da empresa Google e das demais BigTechs em solo cubano contribuíram para intensificar a presença imperialista no espaço virtual caribenho. Isso ampliou as possibilidades de uma dita guerrilha digital para enfraquecer o governo socialista. Para os autores José van Dijck e Thomas Poell (2013), as plataformas de redes digitais são projetadas para promover interação e para disputar a atenção dos usuários através da manipulação de informação e da vigilância social. 

Essa busca por interação está centrada em quatro pilares: a (1)  programabilidade, compreendida como a capacidade das plataformas de conduzir a ação dos usuários por meio do fluxo de informação, seguido da (2) popularidade que contribui na construção das “personalidades digitais” (os famosos influencers), capazes de dialogar com grandes grupos sociais. Para que, isso se torne eficiente, os autores apontam a (3) conectividade como capacidade dos usuários terem acesso tanto ao conteúdo como quanto aos anunciantes e, por fim, a (4) datificação que corresponde à capacidade da plataforma de coletar e organizar muitos dados ao mesmo tempo. Neste sentido, os três primeiros aspectos aqui mencionados servem para ampliar a capacidade de coleta deste último ampliando, assim, a manipulação e o controle social. 

Até o momento, nada de novo, tendo em vista que o governo cubano tinha consciência desse risco ao permitir a entrada de empresas estrangeiras no país. Contudo, a falta de alternativas ao modelo de negócio da Internet atual levou o país a avançar nessa direção. O resultado foi o ataque digital, logo após Cuba ter tido vitórias importantes no cenário internacional. A começar pela Vacina contra a Covid-19 [4]  – Soberana e Abdala – com eficiência imunológica de 90% e que será produzida também no Vietnã para garantir a produção em massa. É preciso lembrar que Cuba, até agora, é o único país do terceiro mundo que desenvolveu vacina própria graças ao foco da revolução nas políticas sociais, nas biotecnologias e na medicina social a exemplo dos médicos cubanos que realizam ações humanitárias no mundo todo. A segunda vitória foi no campo da diplomacia internacional, em que mais uma vez (pelo 29º ano consecutivo) o apelo pelo fim do embargo econômico foi defendido pela Assembleia Geral da ONU. 

Acredita-se que não seja nenhuma coincidência que o ataque digital em Cuba tenha começado algumas semanas após o encontro da ONU, como uma tentativa de reduzir o protagonismo cubano e fomentar a fragilidade econômica e social do país e, com isso, construir uma narrativa que oscila entre a solidariedade e a indignação contra as condições estruturais da população. O segredo, aqui, foi apropriar-se da lógica das plataformas [5] (van Dijck e Poell, 2013) através da disseminação de reivindicações atreladas ao uso de hashtags, como #SosCuba e #SosMatanzas, que facilitam a leitura dos algoritmos e contribuem para a moderação do conteúdo de forma automática, por meio de bots, robôs e inteligência artificial. Isso permitiu que rapidamente as mensagens disseminadas atingissem o máximo de usuários da ilha [7]. 

Outro elemento que confirma que as manifestações em Cuba foram um golpe, foi o local onde começaram os protestos, na pequena San Antonio de los Baños, uma das cidades que possuem o maior índice de consumo de Internet do país [6]. Este elemento pode ser reforçado pelo volume de mensagens que circularam na Internet nos dias das manifestações: 60% do conteúdo em apoio aos manifestantes foi compartilhado de fora da ilha

Neste ponto, cabe aplicar o conceito de César Bolaño (2000) com relação à função da informação que passa de publicidade a propaganda para atender os interesses do mercado e do Estado. No caso das plataformas digitais, ela ocupa a função programa subentendido no processo de interação dos usuários. Essa interação é a essência da estratégia imperialista para atacar a soberania dos países de dentro para fora. 

Todos esses pontos indicam aquilo que comentamos no início deste texto: que o ataque digital em Cuba foi articulado para atender aos interesses políticos e econômicos dos EUA. Já, a sofisticação do golpe está representada na ação das empresas de tecnologia que atuam como uma espécie de “cupim” dentro do espaço digital permitindo que se instale a instabilidade política por meio da interação dos usuários. 

Contentious Politics (confronto político) e as manifestações cubanas

Se, por um lado, a EPC nos fornece elementos importantes para observar a macro dinâmica dos protestos (ataques) digitais da atualidade à luz dos interesses comerciais, por outro, a  Contentious Politics, de Charles Tilly e Sidney Tarrow (2007), concentra-se em observar os micro processos presentes nestes confrontos e as dinâmicas locais. Para os autores, o confronto político se inicia quando grupos sociais fazem reivindicações de forma organizada com o intuito de modificar uma dinâmica política e social. Para isso, todo confronto político precisa: (1) ser composto por reivindicações vinculadas a interesses comuns (como pautas identitárias e estruturais),  (2) ter o governo envolvido no centro das reivindicações, e (3) reunir três elementos importantes da vida social – o confronto, a ação coletiva e a política (Charles Tilly e Sidney Tarrow, 2007). Neste sentido, todas as ações dos movimentos sociais, os ciclos de protestos e as revoluções podem ser enquadrados por esta teoria. Seria importante, aqui, fazer uma crítica à  Contentious Politics com base na perspectiva dialética da EPC, contudo, não seria possível nos limites deste artigo.

Neste sentido, buscaremos apenas observar como os elementos mencionados acima podem servir como chave de análise para compreender as micro dinâmicas dos processos sociais e assim entender os detalhes da estratégia do imperialismo na construção de instabilidade política seguida da derrubada de governos e a implantação de regimes pró-americanos. Se observarmos atentamente as causas dos protestos digitais do século 21, iremos encontrar em praticamente todos a dinâmica descrita  por Tilly e Tarrow (2007), com destaque para os protestos digitais conhecidos como Put People First (PPF) na Inglaterra, em 2009 [8], seguidos da Primavera Árabe que popularizou esse  tipo de ação coletiva em 2010-2011 e mesmo as guerrilhas digitais e revoluções coloridas, que aliás, são casos radicais de mobilização da extrema-direita visando derrubar governos. 

Temos também, como exemplo, o caso paradigmático da Ucrânia, onde grupos neonazistas atuavam abertamente sob o respaldo dos EUA e da Europa. Todos sabemos que o objetivo do imperialismo, no caso, era derrubar o governo eleito, pró russo, e expandir a OTAN mais para o leste, contrariando os acordos da época da dissolução da URSS. O que unifica todos esses movimentos são: (1) o uso das tecnologias e  (2) o avanço da extrema-direita nos países afetados por essas reivindicações on-line que são feitas, majoritariamente, pelo público jovem através do conteúdo customizado e disseminado em alta velocidade. 

Em todos os contextos, os governos estão no centro das reivindicações e as manifestações começam com pequenas ações coletivas. As pequenas ações logo se tornam grandes e são seguidas de confrontos reprimidos através da força policial. Estes confrontos chamam a atenção da esfera pública, ampliam o debate social e contribuem para a manipulação da “opinião pública” para, assim, legitimar os golpes de estados. Consequentemente, o aumento de debate sobre o tema leva os governos a realizar uma ação política, com o intuito de dar fim aos protestos. Essa ação, na maioria das vezes, acaba atendendo parte das reivindicações dos manifestantes e causa um reposicionamento na esfera governamental. Esse fenômeno acontece quando a estratégia da direita é bem sucedida. 

Porém, nem em Cuba, e nem na Venezuela, essa estratégia deu certo até agora. As campanhas de manipulação na grande mídia, no entanto, seguem. E o bloqueio idem. No caso cubano, o imperialismo lançou inclusive a escandalosa palavra de ordem da “intervenção humanitária”, como já havia tentado recentemente na Venezuela, com o apoio dos governos do Brasil e da Colômbia. A resposta de Cuba aos protestos veio através dos cortes dos pontos de Internet, da  repressão policial e da manifestação em defesa do governo. O que pode ser considerada uma repressão super-light se comparada com as brutais ofensivas na Colômbia ou no Chile, com centenas de mortos, gás de pimenta, balas de borracha disparadas contra os olhos dos manifestantes, às quais não se deu maior repercussão. Além disso, o povo cubano ainda respondeu ao golpe com uma mobilização popular, a favor do governo, que calou o intento golpista. 

Neste sentido, podemos constatar que existe uma confluência de fatores atuando nos processos dos protestos digitais da atualidade. Esses fatores não podem ser observados de maneira isolada tendo em vista que existe uma estratégia do imperialismo americano de uso das plataformas para criar instabilidade política e promover a derrubada dos governos. Na maioria dos casos, existe também um ambiente interno de fragilidade política e social que propicia a eclosão de manifestações fomentadas pelas mensagens nas redes e, muitas vezes, são sustentadas pela indústria midiática tradicional. Isso tudo levanta o debate em torno da arquitetura da Internet e da necessidade de fomentar uma narrativa contra-hegemônica que permita o aparecimento de outras vozes e que não fique presa às bolhas de informação. 

Conclusão 

Para concluir, podemos dizer que o cenário das manifestações de Cuba deve ser observado como um alerta da articulação entre os interesses políticos e econômicos materializados nas ações das plataformas. Neste sentido, a declaração feita por Evgeny Morozov (2021), em entrevista recente para o El País, serve como indicativo para as forças políticas e sociais. Para o autor: “É preciso existir pelo menos um entendimento dentro das forças políticas, com os partidos políticos, os sindicatos e outras forças sobre quais são as expectativas da sociedade digital”[9]. Ou seja, é preciso olhar para o ambiente digital como um espaço em disputa. Disputa não apenas do modelo de negócio, mas da organização da informação e das alternativas tecnológicas disponíveis no momento para substituir a Internet atual. Lembrando que essa disputa é assimétrica, pois o modelo de negócio da Internet atual está sob o controle das grandes empresas e, majoritariamente, do governo americano e isso representa um risco para a soberania e independência das nações, como identificamos nos protestos digitais da última década que na sua totalidade serviram aos interesses políticos do imperialismo Norte Americano. 

Para mais informações sobre o debate sobre as FakeNews em Cuba: http://www.cubadebate.cu/

Notas:

[1] Protestos massivos na capital cubana marcaram a década de 1990 após a queda da União Soviética em 1989.

[2] Primavera Árabe no Oriente Médio.

[3] Los Indignados, na Espanha, Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, Junho 2013, no Brasil, Les Gilets Jaunes, na França.

[4] Comparada apenas às vacinas comercializadas na Europa. 

[5] Baseiam-se na personalização de conteúdos para ampliar a interatividade e assim favorecer a coleta de dados dos usuários a serviço das guerrilhas digitais.

[6] Conforme informações do Portal Vermelho.org acesso em 01. 08.2021.

[7]  idem 6.

[8] Protesto organizado alguns dias antes da reunião dos líderes do G20 em Londres, os manifestantes reuniram mais  35 mil pessoas em defesa do trabalho, direitos humanos e meio ambiente. Brian D. Loader, Dan Mercea, Social Media and Democracy: Innovations in Participatory Politics.2012.

[9] Morozov, E. (2021). “ Simpatizar com as empresas de tecnologia é uma forma perversa de síndrome de Estocolmo ,” 1–10.

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Podcast Cutucando Dados #6. A Internet em Cuba. Disponível em: https://anchor.fm/jogando-dados/episodes/Cutucando-os-Dados-6—A-internet-em-Cuba-e11na24 

Podcast Cutucando os Dados #7 – A EPC e os protestos em Cuba