Anderson
Santos1
O
texto para esta participação na Coluna Cepos seria sobre a proposta
de lei para clube-empresa no Brasil. O esboço já estava pronto,
inclusive. Mas o anúncio das negociações do Flamengo com a Amazon
para o patrocínio máster vem gerando boatos sobre a entrada do
conglomerado internacional na transmissão de futebol no Brasil,
considerando que o clube carioca entrou em guerra com o Grupo Globo
nestes primeiros meses do ano2.
Enquanto pesquisador do assunto, fui instigado por um amigo a tratar
disso. É a partir deste diálogo que trato aqui sobre o tema.
Pontos
de partida
Outros
jornalistas e especialistas sobre marketing do futebol escreveram
sobre isso nos últimos dias, ainda que o tema também esteja em
textos de sites e blogs de torcedores do clube carioca. Destaco dois
deles e pretendo desenvolver alguns argumentos a partir do que
tratam: “A tensão entre Flamengo e Globo têm nome: Amazon”, de
Bruno Maia3;
e “Negociação do Flamengo com a Amazon envolve dobrar valor de
patrocínio”, de Rodrigo Mattos4.
São
duas perspectivas diferentes sobre o tema. Maia retrata as ações de
mercado da Amazon com seu produto de OTT “Prime Video”, incluindo
aí a aquisição de direitos de transmissão de eventos esportivos
em outros países para testar a viabilidade econômica do streaming
ao vivo. Lembra-se que na internet quem vinha fazendo transmissões
assim eram aplicativos específicos (DAZN) ou mídias sociais
(Facebook e Twitter), com as plataformas de audiovisual focando em
séries, filmes e reality shows. Outro fato importante informado por
Maia é as
contratações de empregados do Grupo Globo para pensar a produção
nessa entrada no Brasil.
Já
Mattos foca no que está em discussão neste momento entre clube e
empresa, apenas o patrocínio máster na camisa, considerando os
contratos em vigor sobre transmissão de futebol no país, em que só
há espaço de negociação para produção de séries nos
bastidores, a exemplo da que será lançada sobre a participação do
clube carioca no Mundial de Clubes FIFA 2020.
Mudanças
na concorrência
Começando
com a concorrência, pesquisadores brasileiros da Economia Política
da Comunicação (EPC) usam produções do pesquisador Mário Luiz
Possas. Num de seus artigos, o autor cita os seguintes fatores
responsáveis pela transformação da estrutura de mercados frente a
efeitos da concorrência: o ritmo interno de acumulação de lucros
destinados à expansão; o grau de concentração do mercado e os
seus determinantes; a possibilidade de mudança nas formas de
concorrência, especialmente dada através do progresso técnico; e,
por fim, uma maior facilidade em expansão a partir do aprimoramento
tecnológico, com a vinculação com outras indústrias, sendo parte
de um conglomerado empresarial ou não, e com a economia em conjunto
(POSSAS, 1987). São esses fatores que farão parte da nossa análise.
Como
diversos estudos que
aplicam
esta perspectiva aos estudos de concorrência na produção
infocomunicacional brasileira demonstram, o Grupo Globo atuou tanto
nas barreiras de entrada político-institucionais, definindo limites
legais para atuação de concorrentes; quando nas barreiras
estético-produtivas, criando padrões de produtos culturais em
diversos setores (da TV aberta ao cinema).
Com
o avanço das ferramentas da internet, buscou atuar também no
streaming, não vendendo conteúdos para outras plataformas que iam
surgindo – mesmo no auge do Netflix como agente isolado no setor –
e desenvolvendo a sua própria
plataforma,
configurada atualmente no Globoplay. No futebol, o Premiere FC migrou
da assinatura exclusiva via distribuidora de TV fechada para uma
opção individual para plataformas móveis, em 2018.
Antes
disso, no mercado brasileiro, o Esporte Interativo havia criado o
EI+Plus, em 2012, quando estava na fase de empresa nacional pequena
que apostava em conteúdos esportivos que sobravam e no que era
possível de se conquistar recursos a partir de aprimoramentos
tecnológicos, tentando gerar o mercado que ficaria isolada como
líder (SANTOS; BOLAÑO, 2017).
Foi
justamente o Esporte Interativo, após a aquisição pelo grupo
Turner (braço esportivo do conglomerado Warner
Media,
de propriedade da AT&T), que conseguiu mexer com os direitos do
Campeonato Brasileiro de Futebol, após o Grupo Globo adiar uma
disputa real sobre os direitos deste torneio nos dois contratos
assinados de forma individual pelos clubes (2012-2015, 2015-2018).
Mas isso se deu apenas depois de ter se tornado uma das empresas de
um grande conglomerado empresarial transnacional.
Considere-se
ainda que nos últimos anos vimos a entrada da DAZN no país,
plataforma específica para streaming esportivo; e a aquisição pelo
Facebook de direitos de transmissão de jogos da UEFA Champions
League e da Libertadores5.
Ou seja, finalmente a exibição de jogos na internet virou uma
plataforma importante de financiamento, lado
a lado com
o Grupo Globo, inclusive, pagando recursos semelhantes ao da TV
aberta no contrato do Campeonato Brasileiro de 2019 a 2024.
É
este contexto que atiçou especialmente a torcida do Flamengo quanto
a uma possível mudança de cenário na transmissão esportiva no
Brasil.
Possibilidades
futuras e a legislação
Mas
é preciso entender que, como afirma Mattos, a Amazon está ciente de
que a questão da transmissão não é para agora, podendo
futuramente facilitar o acordo de outros produtos. Até porque os
contratos vigentes no Brasileiro são longos, até 2024, enquanto o
próprio Grupo Globo está se remodelando desde o final do ano
passado para concorrer com os novos agentes de telecomunicações.
Pode ser o tempo de o grupo brasileiro se estabilizar ou dar errado –
como foi na disputa das distribuidoras de TV fechada do final dos
anos 1990 e início da década de 2000.
A
Lei do Esporte (9.615/1998) ainda que trate no Art. 42 como “direito
de arena” – mudança realizada em 2011 –, refere-se à
prerrogativa exclusiva dos clubes de negociar a exibição de seus
jogos, mas “por qualquer meio ou processo, de espetáculo
desportivo de que participem”. Portanto, no Brasil a negociação
para transmitir uma partida deve ocorrer com os dois clubes
participantes, não apenas do mandante.
Ou
seja, não adiantaria o Flamengo ter acordo para o Prime Video para
transmissão na internet se o seu adversário não tiver acordo com
o detentor do direito de transmissão das partidas dos adverários.
Um exemplo prático do quanto isso é necessário é que no ano
passado o clube vendeu alguns jogos para transmissão em Portugal,
afinal o técnico Jorge Jesus é português, mas não conseguiu fazer
isso em partidas em que o adversário não quis – considerando que
não havia acordo coletivo para transmissão internacional.
Há
no Senado um projeto de Lei Geral do Esporte (PLS n. 68/2017) que,
dentre tantas outras coisas, define que o “direito de arena”
seria apenas para o mandante. No cenário deste projeto de lei ser
aprovado e nas condições que foi proposto, pois a única ementa
apresentada não trata disso, o mercado como um todo mudaria, pois
uma barreira político-institucional cairia.
Mas
é importante citar que há discussão no Congresso sobre como situar
na legislação as transmissões por ferramentas da internet, se
podem ou não ser consideradas “serviço de acesso condicionado a
pagamento” e, consequentemente, entrar nos limites impostos pela
respectiva lei (Lei n. 12.485/2011).
Outro
limite possível vem da Lei do Esporte (Lei n. 9.615/1998), em
mudança ocorrida em 2003, após o Vasco ser campeão brasileiro de
2000 com a TV Globo exibindo a logomarca do SBT na camisa da equipe
carioca. Há proibição de patrocínio de quem tem concessão,
permissão ou autorização de radiodifusão ou TV fechada. O PSL
68/2017 incluiria empresas de internet e até blogs nessa proibição.
Assim, por exemplo, sob dois novos entendimentos legais a Amazon não
poderia ser patrocinadora de um clube de futebol.
Outras
considerações
Discutir
se o modelo de “direito de arena” é ou não o ideal, e para
quem, ficará para outro momento. Mas minha avaliação é a mesma de
outros textos. Falta os clubes se mexerem para além do
individualismo, de maneira que o esporte possa crescer e se mostrar
mais competitivo frente à concorrência europeia, especialmente.
No
final do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato
Brasileiro de futebol” (SANTOS, 2019), uma das minhas críticas é
que os clubes não entenderam que podem negociar por plataforma,
perdendo em 2019, inclusive, algumas fontes de receita que o Grupo
Globo preferiu não administrar.
O
último contrato para o principal torneio de futebol do país, graças
a Turner, mudou um pouco isso, mas bem pouco mesmo. A Globo jogou
melhor com a maioria. Mas enquanto Palmeiras e Athletico se deram bem
financeiramente, quem subiu sem contrato em 2020 vai usar a mesma
estratégia para poder ganhar mais e ter maior visibilidade.
Além
disso, como citamos no livro, as discussões nos órgãos de
concorrência sobre o tema, incluindo aqui no Brasil, propõem que a
duração do contrato deveria ser de 3 anos justamente para que não
se perca recursos em casos de novas entradas de empresas no mercado
ou novas plataformas. Aqui assinaram por 5 anos.
Entende-se,
claro que boa parte dos clubes brasileiros atuam no emergencial, no
desespero de dívidas que se avolumam. Quem poderia fazer o que o
Palmeiras fez no ano passado? Sem jogo exibido por algumas rodadas no
principal torneio nacional. O Flamengo pode não ganhar os 18 milhões
da transmissão do Carioca, os outros 3 do Rio não – por sinal, o
contrato desse estadual foi assinado por 8 anos, só o Flamengo foi o
único a fechar por 3.
Ainda
que venham surgindo recentemente boatos sobre uma nova liga de clubes
brasileiros, após o fim do Clube dos 13 em 2011, o caminho recente
vem sendo mais de atuação individual, com os que ganham mais
conseguindo ainda mais; que uma distribuição mais equilibrada, o
que só se daria com negociação coletiva, algo presente nos modelos
ideais quanto ao tema (Premier League, Bundesliga, Copa do Brasil,
entre outros).
A
aposta de alguns setores políticos e do futebol está na permissão
de investimento por grupos financeiros a partir da empresarização
plena de um clube. Mas há outros caminhos possíveis e uma longa
discussão pública que precisa ser aberta.
Referências
usadas
POSSAS,
Mário Luiz. Marx e os fundamentos da dinâmica econômica
capitalista. Revista
de Economia Política,
v. 4, n. 3, p. 63-84, jul.-set.1984.
SANTOS,
Anderson David Gomes dos. Os
direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol.
Curitiba: Appris, 2009.
SANTOS,
Anderson David Gomes dos; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Las
estrategias de mercado de Esporte Interativo: regionalización y
capital extranjero en la televisión brasileña. Chasqui
– Revista
Latinoamericana de Comunicación, n. 133, p. 283-396, dez.-mar. 2017.
1
Professor da UFAL, doutorando em Comunicação na UnB, presidente da
Ulepicc-Brasil e autor do livro “Os direitos de transmissão do
Campeonato Brasileiro de Futebol”.
2
Escrevi sobre isso em texto no Ludopédio, onde, por sinal, irá o
texto sobre a empresarização do futebol brasileiro:
https://www.ludopedio.com.br/autores/andersonsantos/
3
Disponível em:
<https://blogdojuca.uol.com.br/2020/03/a-tensao-entre-flamengo-e-globo-tem-nome-amazon/>.
Acesso em: 12 mar. 2020.
4
Disponível em:
<https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2020/03/11/negociacao-do-flamengo-com-a-amazon-envolve-dobrar-valor-de-patrocinio.htm>.
Acesso em: 12 mar. 2020.
5
Para saber mais sobre streaming, leia texto recente de nossa autoria
no site Comunicação e Esporte, disponível em: <
https://comunicacaoeesporte.com/2019/10/17/qual-o-estagio-das-transmissoes-de-futebol-no-brasil/>.
Acesso em: 12 mar. 2020.