Não criemos na EPC uma dicotomia entre pesquisas empíricas e teóricas!

Anderson Santos*

Com as atividades das Rodas de Leitura em EPC, promovidas pela Ulepicc-Brasil (capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura), mas também com conversas em outros espaços de pesquisa, uma coisa vem me preocupando bastante, ainda que não seja algo novo: uma falsa dicotomia entre a pesquisa com maior base teórica e aquela mais empírica (ou que considera um histórico de atuação de bases populares).

Filiação teórico-metodológica

Apresento aqui este manifesto enquanto alguém cuja maior parte da produção acadêmica é a partir de análises empíricas. Estudo a apropriação midiática do futebol há quase 10 anos a partir de seus elementos concorrenciais e enquanto elemento cuja transmissão deveria ser considerada como de “interesse nacional”, logo com observação sobre as regulações sobre isso. O meu único livro tem como título “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol”. Mais empírico impossível!

Entretanto, há até mais tempo que isso, eu procurei me identificar como pesquisador do eixo teórico-metodológico da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (EPC). Aprendi nas orientações do saudoso Valério Cruz Brittos que se nós não nos citamos, aprimorando os nossos conceitos, jamais a EPC, que ocupa a periferia na Comunicação, irá se desenvolver.

Assim, por exemplo, um conceito-chave para as minhas pesquisas sempre foi o de “barreiras político-institucionais”, adaptado por Brittos a partir de Bolaño (2000), que segue a linha heterodoxa da análise concorrencial de Possas (1987) – autor que enfrentou o desafio de construir uma perspectiva de estruturas de mercado a partir de uma visão marxista.

Como vinha de uma formação lendo mais Marx e Lukács que autores da Comunicação, fiz a escolha no Mestrado de focar a leitura na Economia Política da Comunicação (brasileira), pois estava num grupo de pesquisa que partia dela para fazer a análise dos mercados, empresas e programas da Indústria Cultural. O entendimento era simples: se estou filiado a tal escola, preciso dialogar com a sua construção teórica e seus conceitos. E assim seria se eu tivesse estudado a partir da Análise do Discurso de tradições francesas, da Análise de Sites de Redes Sociais ou dos Estudos de Jornalismo – que estudei e dialoguei em algum momento. Filiação de pesquisa requer conhecimento sobre o eixo escolhido e diálogo teórico-conceitual com o que se desenvolve.

Alguém pode me questionar sobre as necessidades que o objeto de pesquisa nos impõe, se isso não seria bloquear as possibilidades de análise. Respondo que normalmente divido o plano metodológico em duas partes: método, base teórico-metodológica que eu parto para o meu olhar; e procedimentos metodológicos, como eu vou pesquisa tal objeto (entrevistas, pesquisa de campo, outra revisão de literatura etc.).

Até eu começar a produzir sobre futebol, havia apenas dois artigos curtos de Bolaño (1999; 2003) que tratam de esportes, mas com foco na capoeira. Para a revisão de literatura sobre o futebol no Brasil eu precisei incluir, mas de forma crítica, autores de outras ciências e perspectivas de análise. Não tive problema quanto a isso.

Além disso, tenho alguns artigos em que tento demonstrar alguns conceitos maiores a partir do meu observável de estudo, que é algo popular e, assim, poderia ajudar na difusão da EPC. Além de trazer a questão das barreiras de mercado com frequência para analisar a disputa pelos direitos de transmissão de torneios esportivos, também produzi artigos sobre “os pontos da entrada de EPC” (SANTOS, 2014), a “fase da multiplicidade da oferta” (SANTOS; MARIA, 2014) e “mercadoria audiência” (A. SANTOS, I. SANTOS, 2018).

Com o aumento das exigências no doutorado, venho tentando me aprimorar no conhecimento teórico mais clássico, a partir de obras de autores como o já citado Possas (1987; 1989), Furtado (2008) e Marx (2011). Aqui entra outra questão, que é tentar me situar com maior cuidado enquanto pesquisador marxista da comunicação. Até este momento mantive a preocupação de evitar me identificar assim, apenas naquilo que eu realmente lia e trabalhava, que é ser pesquisador da EPC na perspectiva de alguns autores brasileiros.

Para as escolhas que eu fiz enquanto pesquisador para a filiação teórico-metodológica que atuo e defendo vejo esse movimento como essencial. Mas nada impede que outras pessoas não busquem, mesmo próximas à EPC, esses movimentos ou até mesmo a filiação a ela ao escrever monografia de TCC ou a dissertação. Porém, sendo agora ortodoxo quanto a isso, para ser pesquisador nesta área é necessário ler autoras – que tenho noção de que não citei aqui, o que levaria a outro texto sobre a área – e autores dela; e partir da EPC, e aí trazer outras teorias ou metodologias necessárias, para observar os objetos. Não vejo como negociar.

O empírico da militância

Entrando numa questão mais sensível e ciente que posso apanhar mais, ainda que a minha trajetória não envolva militância em coletivos sociais mais organizados ou partidos políticos, foram as escolhas político-ideológicas que me levaram à EPC, não de forma mais tradicional – ter um professor a apresentar a área e, assim, estudar os objetos infocomunicacionais a partir dessa perspectiva.

Para quem está na pós-graduação enquanto estudante já há o desafio de equilibrar as questões que apontei no tópico anterior com os prazos exigidos para qualificação e defesa, entre outras coisas. Contando com o contexto político do Brasil dos últimos anos, é ainda mais necessário manter a militância em seu respectivo coletivo ou partido. Até por isso, seria irresponsável da minha parte exigir algo neste tópico, não sendo alguém que se enquadra neste perfil, mas apenas sugerir.

Penso que nós podemos definir prioridades (ou ordem dessas) para atuação em diferentes espaços. É fundamental estabelecer limites para manter a saúde mental e não se sobrecarregar e, ao mesmo tempo, pouco para si mesma/o. Venho tentando deixar isso claro nos grupos/entidades que participo não só para externar os meus limites, mas também para ouvir os das outras pessoas. Mais que pesquisadoras e pesquisadores ou números de matrícula, somos seres humanos.

Assim, uma coisa que eu passei a pedir também é que as pessoas sejam transparentes quanto às prioridades e limites (temporários) de atuação. A situação está bem difícil mesmo, todas/os temos momentos muito ruins. Temos que construir uma cultura de atuação coletiva no âmbito acadêmico em que valha mais a pena participar da forma que pode e quando pode. Só que isso precisa ser externado.

A lealdade a se construir passa, ao menos para mim, bastante pela construção da confiança não só na hora de fazer, mas também nos momentos em que as outras pessoas sabem que naquele momento não é possível contar comigo. Assim, as atividades são melhor planejadas ou até adiadas, se for o caso.

Para soar mais forte quanto a isso, é preciso considerar que ainda que haja o conceito marxista de práxis, que considera a necessidade de “ação consciente” sobre a realidade, são várias ações possíveis em diferentes campos que, especialmente, funcionam de formas distintas.

Tenho clara noção que a minha atuação na “disputa epistemológica” não é suficiente para a transformação radical da sociedade que eu defendo – o que também daria outro texto; mas a militância per si não é suficiente para a disputa epistemológica que, ao adentrar na esfera da pesquisa – como discutido no tópico anterior – passa a ser importante considerar quando se é de um eixo de pesquisa periférico.

Chegando ao fim do texto

Longe de estabelecer conclusões, espero com este texto possa estimular possíveis respostas sobre as duas questões tratadas aqui – a Coluna CEPOS está aberta para isso. Enquanto presidente atual da Ulepicc-Brasil, vejo cada vez mais o quanto é muito importante ampliar as possibilidades de atuação coletiva. Entendo que isso só poderá ocorrer, e consequentemente, ampliar a nossa atuação, quando os nossos limites de participação e desafios para isso são postos à mesa.

*Professor da UFAL, doutorando em Comunicação na UnB, presidente da Ulepicc-Brasil e autor do livro “Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol”.

Referências Bibliográficas

BOLAÑO, César. A capoeira e as artes marciais orientais. Candeeiro, Aracaju, v. 3, p. 51-56, out. 1999.

BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Esporte e Capoeira. Identidade Nacional e Globalização. Candeeiro, Aracaju, v. 9-10, p. 33-42, out. 2003.

BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Polis, 2000.

FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1978].

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. Edição do Kindle.

POSSAS, Mário Luiz. Dinâmica e concorrência capitalista: uma interpretação a partir de Marx. São Paulo: Hucitec, 1989.

POSSAS, Mário Luiz. Estruturas de mercado em oligopólio. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1987.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol. Curitiba: Appris, 2019.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os três pontos de entrada da Economia Política no futebol. Rev. Bras. Ciências do Esporte, v. 36, n. 2, p. 561-575, abr./jun. 2014.

SANTOS, A. D. G.; SANTOS, I. S. da C. Debate teórico do conceito de mercadoria audiência a partir da apropriação do torcedor de futebol. In: SANTOS, Verlane Aragão; HERRAMILLO-HERRERA, Maurício. (Orgs.). Economia Política, Comunicação e Africanidades: XV Seminário OBSCOM/CEPOS. São Cristóvão: ULEPICC-BR/OBSCOM-CEPOS, 2018. p. 80-95.

SANTOS, Anderson David Gomes dos; MARIA, Dijair Brilhantes. A Fase da Multiplicidade da Oferta na Indústria Cultural e no futebol. Mediação, v. 16, n. 18, jan.-jun. 2014. p. 45-61.

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