Plataformas digitais e o Complexo Econômico-Industrial de Saúde na perspectiva crítica da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura

César Bolaño*

Fabrício Zanghelini**

A revista Cadernos do Desenvolvimento publicou uma edição especial em 2021, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), dedicada ao “desenvolvimento, saúde e mudança estrutural”. Aliando o pensamento sanitarista brasileiro a uma concepção heterodoxa de economia política, por oposição à economia da saúde tradicional e em linha com as melhores tradições do pensamento desenvolvimentista, os autores propuseram “a retomada de um vigoroso programa de pesquisa para avançar na relação saúde e desenvolvimento a partir do conceito de Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS)”, como se lê na apresentação do dossiê, feita pelo seu coordenador Carlos Gadelha (2021, p. 11).

O conceito de CEIS é primordial e perpassa toda a discussão; inclusive, em artigo posterior publicado nos Cadernos de Saúde Pública, Gadelha (2022) o definiu como “a base econômica e material do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Ademais, convém assinalar que o próprio relatório final do Gabinete de Transição Governamental do novo governo do presidente Lula defende a “recriação de diversas instâncias de participação social, como o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS)” (Brasil, p. 18).

Assim, é mister observar que se trata de uma perspectiva bastante consolidada e influente no Brasil, embora, como diversas outras, tenha sofrido forte ataque ao longo do período inaugurado com o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. Os governos Temer e Bolsonaro – para além do desastre que foi a gestão, por este último, da pandemia da Covid-19 – representaram uma tentativa de neoliberalização do setor de saúde, de acordo com duas perspectivas privatistas (Bolaño & Zanghelini, 2022) que, em todo caso, concordam com a cessão de informações públicas por meio da criação de um sistema aberto chamado Open health, o qual seria, a exemplo do Open banking, “um repositório de dados assistenciais e de saúde de todos os brasileiros, coletados a partir de um prontuário eletrônico; e um ‘cadastro positivo da saúde’, com dados financeiros sobre os beneficiários de planos” (Fraga & Rocha, 2022).

Isto nos remete à questão das plataformas digitais e, em particular, ao aspecto pouco discutido das relações público-privadas na articulação dos sistemas de controle social e regulação, pois “os diferentes aparelhos do Estado também trocam dados com as plataformas e até participam do modelo de monetização próprio destas últimas” (Bolaño, Martins & Valente, 2022, p. 15). Com efeito, abre-se um flanco para articular a discussão sobre o Complexo Industrial da Saúde e a contribuição crítica da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (EPC) (Bolaño, 2000), levando em conta tanto o trabalho organizado no sistema público e dos trabalhadores vinculados ao complexo e dos responsáveis pela produção e operação das plataformas digitais, estes últimos exercendo um trabalho de mediação social.

O binômio saúde e desenvolvimento pode ser considerado à luz da problemática das plataformas digitais ligadas à informação como serviço público, articulando a contradição entre os interesses do Estado, enquanto capitalista coletivo ideal, e dos capitais individuais em concorrência. Contradição que, num período como o atual, de avanço da Terceira Revolução Industrial e de subsunção do trabalho intelectual (Bolaño, 2002), manifestou-se de forma espetacular no confronto entre os projetos genoma público e empresarial na transição do século XXI (Bolaño, 2003), parte do movimento de constituição do novo modo de regulação com dominância financeira (Chesnais, 1996).

A rigor, o surgimento e expansão das chamadas plataformas digitais faz parte desse movimento que, iniciado na esteira da crise estrutural dos anos setenta do século passado, levará à constituição da economia da Internet e de todas as inovações trazidas com a implantação do novo paradigma industrial da digitalização. Enquanto mecanismos de mediação social, as plataformas situam-se, do ponto de vista do Estado, na intersecção da política industrial com a política social e representam um momento avançado de privatização e de internacionalização do sistema global de cultura, para usar a expressão de Furtado (1978), sob o comando do capital monopolista, acarretando graves consequências sobre a democracia e sobre os sistemas de bem-estar. Uma plataforma potente como a do SUS, por exemplo, apresenta enorme interesse para as empresas oligopolistas globais que encontraram na saúde humana um espaço privilegiado para a acumulação de capital e a exploração do trabalho, mas também para aquelas que se dedicam aos negócios da informação, da publicidade, da propaganda e da vigilância.

Seguimos, doravante, a sugestão de Gadelha (2021, p. 14), na apresentação do referido número dos Cadernos do Desenvolvimento, de que o esforço da sua notável rede de pesquisadores “crescentemente incorpore outros campos de saberes das ciências sociais, exatas e da natureza”, o que, no nosso caso, implica incorporar as reflexões a respeito do CEIS, de forma não eclética, ao marco teórico e analítico da EPC brasileira, de corte marxista e não propriamente heterodoxo, como o dos autores, cujas contribuições se inscrevem, como bem aponta o professor Luiz Gonzaga Belluzzo (2021, p. 24), “na busca de construção de um outro caminho que recrie um pacto que oriente a dinâmica capitalista para que o movimento abstrato do capital se realize no mundo da vida, garantindo o bem-estar e a própria sobrevivência moral do capitalismo”.

Para concluir, importa apenas sublinhar que não nos parece convincente a ideia de um pacto capaz de, diante da crise atual do sistema imperialista – desmoralizado diante do fracasso militar no Afeganistão e das dificuldades, sobretudo na Europa, decorrentes da sua guerra econômica mundial contra a Rússia (Bolaño, 2022) –, garantir um tipo de desenvolvimento inclusivo e ecologicamente sustentável, preservando, ao mesmo tempo, a lógica tautológica da valorização do valor, fundamento do modo de produção capitalista. Aliás, como isso se daria num país periférico como o Brasil é questão ainda mais complexa. Afinal, “se a economia política resolve-se no plano da prática e nas medidas de administração dos problemas da reprodução capitalista (a política econômica), a crítica da economia política tem de se resolver na prática revolucionária” (Medeiros & Bonente, 2021, p. 110). Talvez seja mesmo essa a verdadeira disjuntiva em pauta. E o otimismo é mau conselheiro, não só a ira.

Referências

BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. (2021). Enigmas do capitalismo e o mundo da vida. In: Cadernos do Desenvolvimento, v. 16, n. 28, pp. 19-24.

BOLAÑO, César. (2000). Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Pólis.

BOLAÑO, César. (2003). Economia Política do Conhecimento e o Projeto Genoma Humano do Câncer de São Paulo. In: CD-Rom ANCIB, Belo Horizonte.

BOLAÑO, César. (2022). Ucrânia: imperialismo e guerra da informação. In: <https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ucrania-imperialismo-e-guerra-da-informacao/>.

BOLAÑO, César; MARTINS, Helena; VALENTE, Jonas. (2022). Para a análise teórico-metodológica das plataformas digitais como estruturas de mediação a partir da Economia Política da Comunicação. In: Avatares de la Comunicación y la Cultura, n. 24, pp. 1-20.

BOLAÑO, César; ZANGHELINI, Fabrício. (2022). A desumanidade neoliberal não tem vacina: o vínculo entre negacionismo e neoliberalismo no governo Bolsonaro. In: Marx e o Marxismo, v. 10, n. 19, pp. 169-178.

BRASIL Gabinete de Transição Governamental. (2022). Relatório final. Brasília.

CHESNAIS, François. (1996). A mundialização do capital. São Paulo. Xamã.

FRAGA, Armínio; ROCHA, Rudi. (2022). Por que o ‘open health’? In: <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/03/por-que-o-open-health.shtml>.

FURTADO, Celso. (1978). Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Paz e Terra.

GADELHA, Carlos Augusto Grabois. (2021). Apresentação. In: Cadernos do Desenvolvimento, v. 16, n. 28, pp. 11-18.

GADELHA, Carlos Augusto Grabois. (2022). Complexo Econômico-Industrial da Saúde: a base econômica e material do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 38, supl. 2, pp. 1-17.

MEDEIROS, João Leonardo; BONENTE, Biana Imbiriba. (2021). Marx e a crítica da economia política: considerações metodológicas. In: MEDEIROS, João Leonardo; SÁ BARRETO, Eduardo (orgs.). Para que leiam O Capital: interpretações sobre o livro I. São Paulo: Usina Editorial.

Notas

* Professor titular aposentado da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Diretor da Revista EPTIC e coordenador do grupo Obscom/Cepos, do CNPq, e do grupo de Economia Política da Informação e da Comunicação da CLACSO.

** Doutorando em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos e Niep-Marx.

*** Imagem de destaque: elaboração própria.

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