Por Eduardo Silveira de Menezes (Sul 21)*
O Brasil de hoje, sem sombra de dúvidas, é o país dos falsos paradigmas. Falsa polarização política. Falsas soluções para a crise econômica. Falsa legitimidade para que o governo interino aprofunde um projeto neoliberal fracassado, o qual, ao contrário do que dizem os inconformados com a derrota nas urnas, já estava em curso durante as gestões petistas. Falsas justificativas para as medidas impopulares tomadas contra a base social responsável por eleger esse governo de coalizão. A falsidade é grande no país. É estratégica. É ideológica.
No âmbito das discussões que não chegam ao grande público é ainda pior. Reside um dos resultados menos perceptíveis desse processo: uma “preocupação” traiçoeira com o uso político de entidades como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Tal argumento, aliado aos gastos dos governos Lula e Dilma com essa iniciativa – quase R$ 4 bilhões –, considerando o atual período de recessão, tendem a fundamentar um discurso que, na prática, golpeia a complementaridade dos serviços de radiodifusão e, consequentemente, atenta contra a própria Constituição.
Confundir para deslegitimar
Não é preciso muito esforço para entender o que está por trás da intenção em invalidar um projeto público de comunicação, que, obviamente, assim como ocorre no âmbito das empresas privadas de rádio e TV, apresenta problemas. O plano é se ressaltar apenas os evidentes aspectos negativos que afligem a EBC. Assim, para as forças políticas que se opõem à complementaridade do sistema de radiodifusão – previsto no artigo 223 da Constituição – torna-se estratégico, embora desleal, recorrer ao argumento da “crise econômica” para denunciar um gasto elevado com esse tipo de serviço.
Quem usa desse expediente, no entanto, não se dá ao trabalho de esclarecer, primeiramente, qual a diferença entre comunicação pública e comunicação estatal. A confusão é premeditada. Ao invés de aceitar, tacitamente, a interferência na EBC e o possível fechamento dos seus canais de comunicação, a sociedade deveria estar suficientemente esclarecida para cobrar que o governo – seja ele qual for – respeite e aprimore os mecanismos capazes de assegurar o direito a uma comunicação pública de qualidade.
É uma atitude impensada negar a importância da empresa pública de comunicação – instituída pela Lei 11.652, de 2008 –, embora seja plenamente aceitável discordar de alguns aspectos da forma como tem sido gerenciado esse serviço. A tática utilizada pelas forças políticas que estão ao lado de Temer, entretanto, tem se operacionalizado por meio da tentativa de convencimento de que o problema é a própria comunicação pública. Agindo assim, falta-se com a verdade, uma vez que a melhor aplicabilidade desse serviço pode ser uma solução para a forma já defasada de se fazer comunicação no Brasil.
Ao longo dos últimos anos, quem defende a democratização dos meios de comunicação tem alertado para isso. Da mesma forma que tem questionado o proselitismo político e religioso de algumas concessões públicas – como ocorre com afiliadas da Rede Globo, Rede Record, Rede Bandeirantes, RedeTV! e SBT. Os serviços de comunicação prestados por essas concessionárias, cuja qualidade é, no mínimo, questionável, têm sido responsável por formar uma plateia de analfabetos funcionais. Esse público, hoje, reivindica o fim de algo que, na sua essência, ainda está em disputa, utilizando-se do argumento de que “falta qualidade” na programação de emissoras como a TV Brasil.
Não é de se espantar. A forma como a mídia comercial (hegemônica) os alfabetizou, fez com que se tornassem consumidores de produtos esteticamente atraentes, mas que possuem a profundidade de um pires. Justifica-se, portanto, que programas como: Observatório da Imprensa, Estação Plural, Café Filosófico e a reedição do Provocações – para citar alguns poucos – não caiam no gosto de quem está acostumado com shows de auditório, blockbusters e telenovelas.
Público não é estatal
Desfazer a confusão entre as propostas de comunicação essencialmente públicas e público-estatais deveria ser prioridade nesse debate, pois as pessoas precisam entender no que consistem os diferentes projetos. No entanto, essa discussão não tem chegado ao grande público. A verdade é que a EBC apresenta pontos que podem parecer contraditórios quanto à sua natureza jurídica – o que possibilitou que Temer tentasse afastar o jornalista Ricardo Melo do comando da empresa. O artigo 19, da Lei 11.652, diz que a diretoria executiva da EBC deve ser composta por um diretor-presidente e um diretor-geral, sendo ambos nomeados pelo presidente da República. Acontece que ela também assegura que os nomeados só podem ser depostos pelo Conselho Curador da empresa. O mecanismo de nomeação é o mesmo utilizado por empresas estatais, a nível estadual, cujo governador de um determinado estado escolhe o presidente da Fundação responsável pela gestão das emissoras de televisão e rádio ligadas a essa empresa de comunicação. A diferença consiste na atuação do já citado órgão de caráter consultivo e deliberativo, que é próprio da EBC.
Vale ressaltar, ainda, que o vínculo direto com a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) e as competências impostas pelo artigo 8º, da referida lei, apontam para a necessária “transmissão de atos governamentais” e para a “execução de atividades fins que forem atribuídas pela Secom”. Esses dois pontos, se mal administrados, podem levar, sim, a uma relação ilegítima da empresa com o governo de turno, cabendo uma atenção especial da sociedade civil. Para que a autonomia ambicionada por meio da Lei 11.652, de fato, não seja abalada, seria importante se pensar, por exemplo, na aplicabilidade de um modelo de financiamento próximo do que é adotado pela BBC, de Londres, cuja cobrança de uma taxa compulsória da população atesta um afastamento necessário entre os poderes público e estatal.
Lamentavelmente, a maior parte da sociedade brasileira não está interessada nesse debate. Desconhece a exigência constitucional da complementaridade dos serviços de radiodifusão, a qual prevê a distribuição do espectro entre: comunicação privada – que, em verdade, são as concessões públicas –; estatal – onde o executivo nomeia o diretor-presidente da empresa e financia o projeto –; e pública – cujos recursos, geralmente, provêm de taxas cobradas dos próprios cidadãos, sem a interferência direta do governo.
Esse diagnóstico é importante para se refletir sobre o fato de que, tanto a TV Brasil, pertencente à EBC e, portanto, vinculada, mesmo que indiretamente, ao governo federal, quanto a TV Cultura, de responsabilidade do governo do estado de São Paulo, embora apresentem programas de boa qualidade – como o Jornal da Cultura e o Repórter Brasil – estão, na prática, agindo de forma muito semelhante. São empresas de mídia que tendem, em sua programação, a trazer um olhar mais próximo das forças políticas envolvidas com cada um dos projetos. Não há neutralidade possível em nenhum grupo de mídia. É sempre louvável ressaltar os lugares de fala.
Para se chegar a um modelo essencialmente público é preciso mais do que foi feito até aqui. Os discursos oportunistas atuam sempre nas brechas. O argumento de que os canais ligados à EBC possuem pouca audiência não é critério de qualidade. Por outro lado, seguir o modelo “chapa-branca” dos tradicionais grupos de comunicação estatais também não é uma saída inteligente. A crítica com relação ao gasto público é apenas uma cortina de fumaça para uma justificativa ideológica, que, em verdade, visa minar a democratização dos meios de comunicação.
O governo ilegítimo de Michel Temer não medirá esforços para sepultar, de vez, qualquer iniciativa que possa levar ao avanço na direção da complementaridade dos serviços de radiodifusão, pois sua base aliada tem interesses particulares sobre o tema, sendo muitos deles sócios ou donos de grupos de comunicação – o que, aliás, é proibido pelo artigo 54 da carta constitucional. A comunicação é um serviço público. É um direito de todos. Não é hora de deixar esse debate apenas para quem a utiliza como forma estratégica de disputa pelo poder.