Por Jonas Valente (Blog do Intervozes)
Mais de 500 mil pessoas já baixaram o aplicativo “Pão de Açúcar Mais”, que garante descontos importantes em diversos produtos. Bom demais para ser verdade? O que teria feito uma rede tão grande abrir mão de parte das receitas deste jeito? A resposta é: os nossos dados pessoais. O objetivo do aplicativo é coletar o máximo de informações dos clientes, que podem ser tanto usadas pelo grupo quanto repassadas a fornecedores e empresas parceiras.
Os termos de uso e a política de privacidade do aplicativo afirmam que o programa pode também monitorar a navegação dos usuários em outros sites (por meio da instalação de cookies, arquivos de internet que armazenam temporariamente o que o internauta está visitando na rede). Segundo o texto, a empresa pode ainda alterar os termos a qualquer momento sem comunicar aos clientes. Os “termos”, aqueles que muita gente não lê e apenas assinala “eu concordo” quando instala algo deste tipo. Não são um acordo, mas uma imposição: se o usuário não aceitar as exigências, têm como única opção não ter o aplicativo e, por consequência, os descontos dos produtos.
Esse é mais um dos inúmeros exemplos da exploração abusiva (e muitas vezes ilegal) das informações de pessoas, fenômeno que cresce assustadoramente em nossa sociedade, inclusive no Brasil. Para além das redes de varejo, essa prática é adotada por plataformas (como o Facebook, que neste ano foi denunciado por negociar informações de jovens emocionalmente vulneráveis) e governos (como a tentativa do estado de São Paulo de privatizar a administração do bilhete único e a venda das informações de todos os passageiros cadastrados no programa).
Os dados pessoais são chamados de “novo petróleo” da economia por serem considerados fundamentais pelas empresas para seus negócios. Os diversos serviços “grátis” e descontos têm por trás um objetivo claro: ampliar a capacidade de controle sobre o que as pessoas fazem e como consomem. Enquanto corporações concorrem nesta corrida pela coleta e processamento da maior quantidade de informações possível, nós somos colocados à venda e ficamos totalmente desprotegidos.
Uma campanha pela proteção de dados
Para alertar cidadãs e cidadãos sobre esse problema, a Coalizão Direitos na Rede (que reúne dezenas de entidades da sociedade civil, pesquisadores e organizações de defesa do consumidor) lança, nessa semana, a campanha “Seus Dados São Você: liberdade, proteção e regulação”. A iniciativa vai promover diversas ações para pautar o tema e chamar atenção para a necessidade de construir regras que evitem esses abusos, em especial uma legislação para o assunto.
A mobilização se inicia hoje (19) no seminário de privacidade do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e terá novos eventos em diversas cidades. Ela também será tema de atividades durante a Semana pela Democratização da Comunicação, de 15 a 21 de outubro. Além de eventos, a campanha vai disseminar material nas redes sociais discutindo o assunto e denunciando casos de uso abusivo e ilegal de dados. Também serão feitas sugestões de como mudar esta realidade, para que possamos ter acesso a recursos tecnológicos sem violar nossa privacidade ou ficarmos à mercê dessas corporações, como por meio da aprovação de uma lei.
Não temos nada a esconder?
Um primeiro objetivo da iniciativa é mostrar que o controle sobre os dados é um direito. Há quem diga que não liga para o problema porque “não tem nada a esconder”. A questão não é sobre segredos, mas sobre o direito das pessoas de escolher o que divulgar e para quem. Todo mundo deixa o computador aberto no meio do trabalho? Ou aceita colocar todos os seus e-mails ou mensagens de Whatsapp na internet? Aceitamos “andar todos nus”?
O caráter privado dessas comunicações e recursos como senhas e afins existem exatamente porque muitos gostam de (e muitas vezes precisam) manter parte da sua vida para si. E a publicação de mensagens, fotos e vídeos já é possível em diversos espaços, como as redes sociais. A diferença é que isso deve ser uma escolha, e não uma imposição dos aplicativos, não? Não deveria o usuário poder dizer o que quer dividir, saber o que é feito com suas informações, aceitar ou não se estas vão ser usadas para recomendações automatizadas ou para publicidade personalizada?
Inês é morta?
Outro propósito é apontar que é possível uma situação diferente sim. A coleta massiva e o uso indiscriminado de dados não são uma realidade dada, mas um processo em disputa. Em conversas com amigos, não é difícil ouvir “ah, mas eles já sabem tudo sobre nós”. Este é o objetivo de plataformas, corporações e governos, mas a quantidade já coletada é pouco perto do que ainda podem acessar. Essa é a grande questão: as empresas estão fazendo de tudo para saber o que puderem sobre nós. E isso só ocorre porque no Brasil não há uma legislação de proteção de dados pessoais, que existe em outros países, como na União Européia e em oito nações da América Latina.
Garantir a proteção em lei
Nem todo mundo sabe que há propostas de lei sobre o tema em discussão no Congresso, sendo a mais importante delas o PL 5276/2016, enviado pelo Executivo após intensos debates e consultas. Aqui neste blog já publicamos antes análises sobre os projetos e a importância da sua aprovação. A Coalizão Direitos na Rede já se manifestou em defesa do PL 5276, apontando o que uma lei de proteção de dados precisa ter. A rede defende a garantia da coleta mínima e com consentimento, o uso apenas para a finalidade descrita no momento da permissão, o acesso aos dados pelas pessoas em qualquer momento do tratamento e a criação de uma autoridade que possa fiscalizar e punir abusos e ilegalidades, entre outros pontos.
Do outro lado, empresas de diversos setores, plataformas (como Facebook e Google) e operadoras de telecomunicações pressionam para assegurar em lei uma “farra dos dados”. Assim poderiam colher o máximo de informações, usar para o que bem entenderem sem pedir a nossa permissão, não ter qualquer obrigação de transparência com o usuário e ainda reduzir a capacidade de serem fiscalizadas e punidas se desrespeitarem a lei.
A Campanha Seus Dados São Você é lançada em um momento chave deste embate. A comissão especial criada para discutir o tema na Câmara está prestes a apreciar uma nova versão a partir dos projetos em análise, chamada na linguagem do Parlamento de substitutivo. Um primeiro esforço da campanha é garantir que a lei de dados pessoais seja votada e aprovada. O segundo, e mais importante, é impedir que ela prejudique cidadãs e cidadãos e, ao contrário, garanta a nossa proteção contra o avanço das corporações sobre nós e nossa vida.
Sua proteção depende também de você
Para conquistar uma vitória, a pressão deve ir além das entidades já envolvidas com o tema. É preciso que todas e todos com a preocupação sobre seus dados e o controle de suas vidas ajudem a pressionar os parlamentares e o governo. A Campanha traz este chamado: faça parte deste movimento. Mas como cada um pode ajudar? De diversas formas:
– Entre no site da campanha e saiba mais sobre o tema e sobre as propostas em discussão no parlamento;
– Siga a página da Coalizão Direitos na Rede no Facebook e o perfil no Twitter, compartilhe os posts, participe das mobilizações na rede (como o tuitaço marcado para quinta-feira, 21, a partir das 14h30);
– Se você faz parte de alguma organização, entre em contato com a Coalizão Direitos na Rede para saber como ajudar, organizar um debate ou contribuir de alguma forma;
– Fique ligado nas mobilizações sobre o Congresso e os parlamentares (que serão divulgadas nos perfis da Coalizão) pela aprovação da lei de dados pessoais.
Faça parte desta campanha. A mobilização de brasileiras e brasileiros já conseguiu garantir a aprovação do Marco Civil da Internet e barrar o limite de dados na internet fixa (as chamadas franquias). Agora chegou a hora de mostrar ao Parlamento que não aceitamos ser colocados à venda.
*Jonas Valente é integrante do Conselho Diretor do Coletivo Intervozes e doutorando no departamento de Sociologia da UnB, onde estuda plataformas digitais