A semana de 17 a 22 de maio apresentou vários momentos para que pensemos as mídias sociais, a internet livre e como aparecem e se misturam as formas publicidade e propaganda, expostas por Bolaño (2000)3, na era da rede mundial de computadores e suas ferramentas digitais de informação e comunicação.
Em uma definição rápida, a forma funcional publicidade é aquela própria ao mercado e necessária para a circulação de mercadorias. Já a propaganda é própria ao Estado, necessária para a coesão e organização social.
Na segunda-feira (18), Felipe Neto, um dos maiores youtubers do país, esteve no centro do Roda Viva, da TV Cultura, um dos mais tradicionais programas da televisão brasileira. A entrevista rendeu discussões sobre os termos que ele usou (golpe, fascismo…), mas também sobre a influência da internet no debate público, os limites desse apoio e qual o papel de pessoas como ele na construção de oposição ao atual governo do Brasil em meio – principalmente, mas não só – a uma pandemia. Voltaremos ao assunto na sequência.
Antes disso, entretanto, no domingo (17), o El País Brasil publicou um texto no qual destaca a atuação do movimento Sleeping Giants nos Estados Unidos4. O movimento criado em novembro de 2016 (ano da eleição de Donald Trump), através de um perfil no Twitter (@slpng_giants), informa e alerta empresas, anexando prints, de que a publicidade de seus produtos está sendo anunciada em sites de extrema-direita. Com isso, as empresas podem entrar em contato com o contratado e fazer com que a publicidade nesse tipo de site/conteúdo seja retirada, desferindo um golpe no financiamento de produtores midiáticos que recebem muitos cliques a despeito ou por causa do conteúdo mentiroso ou sensacionalista que criam e propagam.
Três dias depois, na quarta-feira (20), o mesmo El País Brasil noticiou que um estudante que desenvolve pesquisas relacionadas a fake news criou um perfil brasileiro do movimento (@slpng_giants_pt)5. Em menos de uma semana, o perfil passou a mais de 200 mil seguidores e entrou em choque com o governo federal ao informar ao Banco do Brasil (BB) que havia publicidade sua no site Jornal da Cidade Online6. Em um primeiro momento, o BB retirou a publicidade do site, mas, após reclamações de membros do governo e de Carlos Bolsonaro, filho do presidente, a publicidade foi restaurada.7
Na mesma quarta-feira foi publicado o episódio número cinco do Jogando Dados, podcast sobre Economia Política da Comunicação (EPC) fruto da parceria Cubo/UEL e CEPCOM/UFAL, no qual a discussão partiu de uma pergunta simples: “A informação é livre na internet?”8 Para nós, membros do podcast, ela não é. Para justificar a resposta, abordamos algumas das questões que retomaremos a seguir, mas também outras mais, que não serão exposta aqui, mas estão no episódio de pouco mais de uma hora.
Há uma espécie de senso comum geral que acha que sim, que a internet é livre, mas é preciso de algumas formas de regulação (seja de conteúdo ou de mercado). Nesse sentido, no começo do mês, o Facebook anunciou um comitê de especialistas para regular postagens e conteúdos feitos no site de rede social.9 Há várias críticas possíveis de serem feitas, como a falta de transparência sobre o tipo de postagem que será excluída e quais os parâmetros para tal, afinal, postagens diversas já foram excluídas de forma aparentemente sem sentido (desde conteúdo relativo à pandemia até a histórica foto do soldado soviético com a bandeira da União Soviética no Reichtag, em 194510), mas também, como argumenta o professor Siva Vaidhyanathan, da Universidade da Virginia, sobre a composição do comitê, há a maioria de membros dos Estados Unidos e os próprios limites técnicos (número de postagens, linguagem delas etc.) no comitê11. Ele coloca ao final do artigo que o problema do Facebook não é a regulação de conteúdo e postagens que foram/são excluídas, mas o próprio Facebook. Esse argumento aparece já em seu livro sobre o site12.
Poderíamos argumentar mais além, que a estrutura da internet, privatizada e massificada na década de 1990, baseia-se na venda de publicidade (principal fonte de recursos de Google e Facebook, por exemplo) e no domínio de megacorporações, como as reunidas na sigla GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), que têm ações em bolsas de valores e são grandes grupos que lucram ainda com especulação e financeirização da economia.
Entretanto, além dessas nuances de interesses de corporações privadas e do capital financeiro não serem o foco principal, geralmente o debate fica muito superficialmente na regulação do conteúdo e no combate as assim chamadas fake news, que, como tratamos em outros episódios, especialmente o #113, existem como possibilidade e realidade desde muito antes.
Enfim, tudo isso para voltar no ponto de que as iniciativas como o movimento Sleeping Giants são bem interessantes e notificar empresas para que tirem seus anúncios de sites de fake news e de extrema-direita e afins são importantes em uma, digamos, disputa mais pontual, mas o grosso (esse sistema de financiamento e de “direcionamento” de publicidade) está lá ainda.
Na quinta-feira (21), o professor Marcelo Castañeda (UFRJ), em seu perfil no Twitter (@celocastaneda), apontou o problema do Google e do AdSense14, mas foi o professor Fabio Malini (UFES) quem desenvolveu e publicou, também em seu perfil no site (@fabiomalini), um fio sobre o coração do tipo de negócio dos propagandistas da extrema-direita. Segundo Malini, o movimento citado acima ataca a “franja” da micropropaganda, mas falta atacar o “núcleo duro” que é, para ele, o Google15.
Concordamos com Malini que o Google e o sistema do AdSense são um problema, assim como todo esse sistema baseado na forma publicidade (remuneração, recomendação de conteúdo ou parametrização de algoritmo para montagem de linhas do tempo), entretanto, discordamos não da necessidade, mas da possibilidade/efetividade de uma regulação do Google. Não se mostra possível dentro da lógica contemporânea do capital financeiro e do neoliberalismo uma regulação do tipo fordista, que vigorou nos países centrais no período pós-guerra.
Esse sistema baseado na lógica da publicidade, entretanto, já se espraiou para além do mercado e está misturada com a da propaganda. Por exemplo, as revistas acadêmicas são ranqueadas em relevância de acordo com um algoritmo do Google, mas também a própria ideia de importância de algum tipo de pesquisa ou desenvolvimento acadêmico está sendo pautada pela relevância/retorno à sociedade – isso, claro, baseado em visualizações, pessoas impactadas, divulgação etc.16 Ou seja, no lugar da discussão sobre métodos e formas de produção de conhecimento, estamos nos pautando por modelos de divulgação, de citação e quantidade de referências/pessoas alcançadas e afins. O que era da lógica do Estado organizar, agora está sendo pautado pelo mercado através da forma publicidade.
Para fechar a semana, na sexta-feira (22), o Supremo Tribunal Federal (STF) liberou a divulgação de uma reunião entre ministros e presidência da república17. Pouco há de provas18, mas esse tipo de informação é noticiada, repercutida, comentada, enfim, é circulada e pauta o debate “público”. A publicidade desse tipo de conteúdo pouco fragiliza o governo, mas serve e muito para reorganizar e garantir a coesão da base bolsonarista. Em outros termos, é a propaganda operando pela lógica da publicidade.
Voltemos então ao episódio do Felipe Neto para encerrar essa primeira abordagem do tema, que deverá ser desenvolvida posteriormente na sequência das pesquisas. Felipe Neto foi ao Roda Viva, defendeu pautas “progressistas” e virou alvo de uma série de discussões sobre sua mudança, que tipo de composição pode ser feita com gente como ele (arrependidos, influenciadores digitais…) e sobre o uso de termos como golpe e fascismo para falar de 2016 e do atual governo do Brasil. Tudo isso pode ser interessante de se discutir, mas não é o foco desse texto.
Mais relevante aqui é a discussão levantada a partir de postagem feita pela professora Suzy Santos (UFRJ) em sua página no Facebook19. Nela, Santos faz uma pergunta bem simples, mas que não foi feita ao entrevistado no programa: Por que Felipe Neto fala como progressista na televisão e no Twitter, mas não posta nada do tipo no YouTube, onde tem mais alcance e de onde recebe a maior parte de seus rendimentos? Essa mistura das formas publicidade e propaganda aparece como o convite para que Felipe Neto participe do programa e seja tido como relevante por causa de seu alcance e da repercussão que gera, ou seja, da publicidade, mas ele entra nesse espaço “público” e da discussão mais ligada à forma propaganda sem, entretanto, arriscar penalizar sua fonte de lucros (o YouTube), afinal, ele provavelmente entende muito mais de internet do que nós.
Entender, portanto, como o governo e o Estado estão atuando de acordo com o espraiamento da lógica do mercado através da forma publicidade ajuda a pensar em como travar um embate através dela (estratégias de monetização de conteúdo junto à denúncia de outros, formas mais adequadas de atuação nas redes sociais e no jornalismo etc.), mas, no final, é importante reiterar que o problema é da própria forma, logo, não é possível superar o problema sem a superação da forma social da comunicação e do próprio capitalismo.
1Esse artigo surgiu de um fio elaborado no Twitter e de conversas com os outros membros do podcast Jogando Dados (Anderson Santos, Gabriela Fernandes Silva, Manoel Dourado Bastos) durante e entre os episódios.
2É jornalista do Sindiprol/Aduel, mestrando do programa de pós-graduação em Comunicação da UEL e membro do podcast Jogando Dados.
3 BOLAÑO, César. Indústria cultural: informação e capitalismo. São Paulo. Pólis/Hucitec. 2000.
4QUEIMALIÑOS, Rebeca. O homem que arruinou a extrema-direita. El País Brasil, 17 maio 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/icon/2020-05-17/o-homem-que-arruinou-a-extrema-direita-nos-eua.html> Acesso em: 22 maio 2020.
5PIRES, Breiller. Movimento expõe empresas do Brasil que financiam, via anúncios, sites de extrema direita e notícias falsas. El País Brasil, 20 maio 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-20/movimento-expoe-empresas-do-brasil-que-financiam-via-publicidade-sites-de-extrema-direita-e-que-propagam-noticias-falsas.html> Acesso em: 22 maio 2020.
6Caso alguém queira ver o tipo de conteúdo publicado no site, o endereço é: https://www.jornaldacidadeonline.com.br/ .
7MATTOSO, Camila; CARNEIRO, Mariana; SETO, Guilherme. Após reclamação de Carlos Bolsonaro, Banco do Brasil volta atrás e mantém publicidade em site. Folha de S. Paulo, 21 maio 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/05/apos-reclamacao-de-carlos-bolsonaro-banco-do-brasil-volta-atras-e-mantem-publicidade-em-site.shtml?> Acesso em: 22 maio 2020.
8 SANTOS, Anderson; BASTOS, Manoel; BERNARDI, Guilherme. A Informação é livre na internet? Jogando Dados, 20 maio 2020. Podcast. 1 MP3 (61 min.). Disponível em: <https://anchor.fm/jogando-dados/episodes/05—A-informao–livre-na-internet-eear8o> Acesso em: 20 maio 2020.
9AFP. Facebook apresente comitê de especialistas para decidir sobre conteúdo polêmico. Estado de Minas, 6 maio 2020. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/05/06/interna_internacional,1145065/facebook-apresenta-comite-de-especialistas-para-decidir-sobre-conteudo.shtml> Acesso em: 19 maio 2020.
10No caso da exclusão de conteúdo de forma errada, é possível acompanhar a iniciativa do CensuraBot lançado pelo Observacom: https://www.observacom.org/censurabot/. Sobre a exclusão da foto do soldado soviético, ver o tuíte com a referência postada por Filipe Barini: https://twitter.com/molote_molote/status/1259131763806404609.
11VAIDHYANATHAN, Siva. Facebook and the Folly of Self-Regulation. Wired, 9 maio 2020. Disponível em: <https://www.wired.com/story/facebook-and-the-folly-of-self-regulation/> Acesso em: 19 maio 2020.
12___________________. Antisocial Media: How Facebook Disconnects Us and Undermines Democracy. Oxônia. Oxford University Press. E-book. 2018.
13SANTOS, Anderson; BASTOS, Manoel; BERNARDI, Guilherme. O que é desinformação? Jogando Dados, 22 abril 2020. Podcast. 1 MP3 (67 min.). Disponível em: <https://anchor.fm/jogando-dados/episodes/01—O-que–desinformao-ed4bnf> Acesso em: 20 maio 2020.
14https://twitter.com/celocastaneda/status/1263652717106429952
15# https://twitter.com/fabiomalini/status/1263655711411757057
16Vale ouvir o episódio sobre “Anti-Intelectualismo” do podcast Psicanálise de Conjuntura que aborda o tema. BARROS, Douglas et al. Anti-Intelectualismo. Psicanálise de Conjuntura, 19 maio 2020. Podcast. 1 MP3 (102 min.). Disponível em: <https://senscast.org/2020/podcast/psicanalise-de-conjuntura-08-anti-intelectualismo/> Acesso em: 20 maio 2020.
17Vídeo de reunião de Bolsonaro é divulgado na íntegra pelo STF; veja falas mais importantes. BBC, 22 maio 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52779195> Acesso em: 22 maio 2020.
18Poderíamos expandir e analisar como é um padrão da Lava Jato e, mais recentemente, na saída de Sérgio Moro do governo. O objetivo não é primordialmente jurídico/político, mas comunicativo. A motivação é pautar o debate, criar narrativas, abrir espaço e, aí, organizar a base. O jornalismo, num geral, ajuda e muito ao apenas publicar as faltas e dar espaço para o tipo de fala que não dividi, mas agrupa a base bolsonarista.
19https://www.facebook.com/suzy.santos.7/posts/3423032184393314
Caro Bernardi. Aproveito teu interessante artigo para retomar um aspecto do que eu publiquei na última Coluna Cepos, sobre Covid-19, fazendo uma crítica marxista a uma interpretação pós-modernista do problema. Da mesma forma, como você bem aponta, que a nova esfera pública global, da internet e das plataformas sociais, não representa mais que a consequência da expansão da forma publicidade e da mercantilização da cultura, contra as formas comunitárias de organização social, ou ainda, da transição, já bem avançada, da regulação estatal (keynesiana) para outra mais mercantil (neoliberal) das relações sociais, de acordo com a lógica e os interesses do grande capital, o tratamento do problema posto pela pandemia global não revela outra coisa. Uma centena de laboratórios privados se encontram hoje em concorrência, em nível global, pelas rendas de monopólio que as patentes de remédios, vacinas e tratamentos poderão garantir para os que chegarem primeiro na disputa. Todas as condições da existência, toda a vida e todas as formas de vida estão submetidas à lógica da concorrência e da valorização do capital. A pandemia não representa a democratização da necro-política, como chegou a aventar Mbembe, numa entrevista que cito no artigo referido acima, mas, ao contrário, trata-se de um aprofundamento das formas mercantis de controle social. Isto pode ser entendido à maneira de Foucault (bio-poder), mas eu prefiro recorrer ao trabalho fundamental de Polanyi (A grande transformação), que utilizei em outro texto, não faz muito tempo, onde ele mostra como o liberalismo do início do século XX gestou as condições que levaram à catástrofe. Não é apenas a gripe espanhola que serve como termo de comparação para a crise atual, por conta da pandemia, pois os frutos malévolos do neoliberalismo já romperam a casca do ovo e rastejam diante de nossos olhos.
Olá, professor César Bolaño. Muito interessantes os apontamentos e os paralelos que podem ser traçados entre as duplas gripe espanhola-liberalismo e coronavírus-neoliberalismo. Confesso que não havia exatamente relacionado as duas e os dois momentos, apesar de já ter lido sobre as situações. Li seu artigo recente criticando o Han e outras abordagens pós-modernistas e estou totalmente de acordo com as críticas, principalmente às leituras que veem algo muito novo e de alguma forma “universalistas”/democratizantes na pandemia e na saída dela pela via de uma nova organização social que parece não ter o capitalismo como centro do problema.
Espero desenvolver o assunto (aprofundamento da mercantilização da organização da vida e sua relação com a internet e as formas publicidade e propaganda) em minha dissertação, sob orientação do professor Manoel Dourado Bastos, focando na “crise”/desaparecimento/esgotamento de um tipo de regulação fordista, a ascensão do neoliberalismo, da financeirização da economia e o “papel” da internet nelas. Polanyi aparece bastante no livro do Arrighi que acabamos de ler (O Longo Século XX) e que pode vir a entrar na sequência das leituras, que agora estão no Robert Brenner (The Economics of Global Turbulence e O Boom e a Bolha).
Enfim, vejo seu comentário como um sinal de que estamos trilhando um bom caminho de pesquisa e de análise. Agora é continuar nele e desenvolver o tema!