O artigo de César Bolaño “Trabalho intelectual, comunicação e capitalismo. A reconfiguração do fator subjetivo na atual reestruturação produtiva” foi recuperado e está no acervo da biblioteca Eptic.
Publicado na revista da Sociedade Brasileira de Economia Política em 2002, o texto trata das relações entre trabalho e comunicação após a reestruturação produtiva ensejada pela terceira revolução industrial a partir da década de 1970 com especial atenção para o conceito marxiano de subsunção do trabalho intelectual. O acervo da revista conta apenas com os volumes publicados a partir de 2013.
No mesmo dia que Tiago Leifert anunciou aos participantes que, pela primeira vez na história, a edição do Big Brother Brasil seria estendida devido ao apelo do público, ouviram-se da janela gritos em celebração quando o brother Babu Santana terminou sua participação na prova do líder como favorito, como numa copa do mundo de um jogador só. Na timeline do Twitter, memes surgiam numa velocidade humanamente impossível de consumir em totalidade.
Horas
antes, o presidente Jair Bolsonaro havia demitido o então ministro
da saúde, em meio à pandemia global do COVID-19. A janela também
anunciou: dessa vez com panelas. Os memes tinham um tom mais
fatalista que aqueles que viriam mais tarde, mas ainda regados de
humor.
Essas duas situações nos levaram a algumas reflexões que tentaremos levantar aqui. Começando pelo artigo “How the world’s collective attention is being paid to a pandemic: COVID-19 related 1-gram time series for 24 languages on Twitter” (3), que analisa os principais termos ou símbolos utilizados nas três primeiras semanas de março de 2020 para cada língua no Twitter. Dos 20 resultados para a língua portuguesa, 13 estavam relacionadas ao reality show da Rede Globo e seus participantes, contra 5 sobre a pandemia. A dessemelhança com os resultados de outras línguas também chama atenção:
Ao
longo dos anos, o debate sobre pautas sociais no Big Brother Brasil
vem crescendo, já desenhado desde a seleção dos participantes pela
produção do programa, tendo dentre eles ativistas e defensores de
causas como gênero, raça e sexualidade (curiosamente, debates
partidários não são comuns entre o elenco
– ou,
se são, não passam pelo corte da edição). Nesta 20ª edição,
essas pautas ganharam destaque central para o desenrolar da
competição, especialmente as duas primeiras problemáticas citadas.
Ademais, essa também é a primeira edição em que participam
pessoas já famosas antes do programa, com uma base de seguidores
fiéis nas redes sociais, o que acalorou as rivalidades dentro e fora
do confinamento.
Os fãs sempre estiveram inseridos na lógica do programa: Bruno
Campanella mostra fandoms
altamente organizados em sua tese, escrita há 10 anos (4). E, como
em todo consumo de fã, o afeto interfere imediatamente na
interpretação do texto, mas, especificamente em realitys
de votação pública, há a certeza de interferência no resultado
final mediante participação. Contar com um público fiel e parcial
já antes da disputa começar proporcionou uma vantagem única.
Como
eficiente programa de entretenimento, o Big Brother dá ao público a
oportunidade de criar narrativas maniqueístas, de fácil
acompanhamento até para aqueles que não assistem assiduamente. O
primeiro grande arco narrativo do BBB 20 aconteceu logo nas primeiras
semanas do programa e foi pautado pela desigualdade de gênero, com
denúncias de assédio e machismo por alguns homens da casa, os
“machos escrotos”; e exaltação do comportamento da maioria das
mulheres, que receberam o carinhoso apelido de “fadas sensatas”,
com base na identidade da campanha virtual da participante Manu
Gavassi, a mais famosa pré-BBB. As fadas sensatas são as que “nunca
erraram”, que percebem as injustiças sociais e não têm medo de
combatê-las, defensoras da verdade e igualdade. Já os machos foram
prontamente eliminados, um a um.
Entretanto, a temática central da edição ainda estava por vir: o preconceito racial. E, num plot twist hollywoodiano, eram as fadas quem assumiriam o papel de vilãs para o mocinho Babu, que tinha uma certa proximidade com o grupo dos machos. Babu é negro e anda pela casa orgulhosamente ostentando seu pente garfo preso no cabelo crespo. Do outro lado figura um autointitulado “grupo hippie”, com membros brancos à exceção de Thelma, amiga e protegida do ator carioca. Dentre alguns posicionamentos infelizes, o grupo associou Babu a monstruosidades e macumbas. As fadas sensatas agora são, jocosamente, chamadas por alguns de “fadas senzalas”. As disputas, claro, são definitivamente resolvidas no paredão (que, por sinal, bateu o recorde mundial do formato com 1,5 bilhões de votos na disputa entre Prior, melhor amigo de Babu, e Manu Gavassi). Isso não impede que o debate ganhe espaço também nas redes sociais, como deixa claro o levantamento citado acima. Não basta votar, é preciso expressar o voto, se posicionar, fazer campanha, cobrar posicionamento de celebridades e figuras públicas (até o eterno Luke Skywalker, Mark Hammil, entrou para a briga). As hahstags tomam lugar de bandeiras, sendo usadas para evidenciar, orgulhosamente, de que lado está. #FicaFulano e #ForaCiclano. Enquanto isso, o discurso social que iniciou a disputa se esvazia, dando lugar a memes, fake news e ameaças. Não há teoria ou embasamento. Surgem duas competições: uma interna, pela vitória nas votações; e uma externa, pelo fandom mais forte.
Olhando
bem, parece até que já vimos esse filme antes.
A
participação do público ao BBB 20, programa de TV frequentemente
visto com maus olhos pela academia, ilustra diversos pontos
discutidos atualmente pelos teóricos da Comunicação Social no
Brasil: desde as próprias causas sociais e a respectiva aderência
dos espectadores, própria dos Estudos Culturais, até discussões
sobre convergência e segunda tela – algo que a Rede Globo demorou
para dominar mas hoje usa com maestria. Dentro do campo da EPC(5),
alguns pontos que merecem aprofundamentos são: o crescente interesse
da emissora nos debates sociais e como ocorre a apropriação desses
temas pela Globo; a função interação e as formas de captar o
engajamento do público; as maneiras usadas para incorporar a
movimentação nos sites de rede social que, inicialmente, não
trariam lucros diretos para a produção; e a incorporação da
lógica dos fandoms
em movimentos políticos.
Sobre esse último, propomos destacar dois conceitos que vem ganhando espaço dentro dos Estudos de Fãs: o fanactivism, ou ativismo de fã, quando a presença no fandom influencia a participação em algum movimento social ou militância; e o fã político, aquele que, mais que um eleitor, possui um comportamento interativo com a figura pública. Até onde vai a causa? Onde o afeto passa a imperar? É possível reconhecer que seu ídolo pode se tornar vilão? Teria meu candidato se tornado uma fada sensata?
Grande
de parte dos movimentos sociais e partidos de esquerda fazem uso
irrefletido das plataformas digitais como ferramentas de comunicação,
e acabam aderindo à lógica mercantilista dessas empresas ou ainda
usando a ferramenta sem qualquer estratégia ou análise de
conjuntura adequada. Gramsci (8),
ao analisar como os partidos progressistas poderiam transformar o
senso comum, usou uma metáfora comparando as estratégias de
convencimento com táticas de guerra. Ele notou que, assim como nos
confrontos bélicos de seu tempo, as lutas ideológicas estavam
passando cada vez mais da guerra de movimento, realizada em campo
aberto onde as forças se confrontavam diretamente, para a guerra de
trincheira em que o exército vencedor derruba as trincheiras dos
adversários uma a uma. Dessa forma, os partidos progressistas, para
transformarem o senso comum e criarem novos consensos, deveriam
quebrar resistências culturais, aproveitando-se de elementos
progressistas presentes na cultura popular.
O
uso da guerra de trincheiras enquanto tática não significaria não
usar a guerra de movimento, mas utilizar um conjunto de táticas em
diferentes contexto. Tanto que ao citar o exemplo de Gandhi, Gramsci
observa que o indiano utilizou três formas de tática: a guerra de
movimento, a guerra de posição e a guerra subterrânea para livra a
Índia do jugo britânico. A Greve, por exemplo, é considerada
guerra de movimento, mas deve vir conjugada com outras táticas para
ser efetiva. Os algoritmos utilizados pelas plataformas digitais, ao
enclausurarem os usuários de acordo com suas preferências
políticas, musicais etc; tornam difícil a guerra de trincheiras e
assemelha a disputa política a guerra de movimento em que dois
exércitos se enfrentam em campo aberto.
Assim,
a esquerda encontra dificuldades para derrubar trincheiras nas redes
sociais. Os fandoms
– sejam
eles seja políticos, midiáticos ou de participantes do BBB
– se
baseiam numa identificação primária, muitas vezes pautada pelo
reconhecimento de valores morais. No caso dos fandoms
políticos,
essa identificação se baseia também, normalmente, em uma suposta
superioridade moral que renega totalmente a experiência do outro,
visto como adversário, e cobra uma aceitação moral total a uma
série de preceitos, o que vai de encontro às táticas preconizadas
por Gramsci para a criação de um novo senso comum. Na verdade, as
bolhas de filtros se apresentam como muros,intransponíveis
às táticas dos progressistas em superá-los.
Por fim, nas redes sociais, a extrema direita utiliza uma sofisticada guerra subterrânea de desinformação com uso de Fake News, Bots, grupos de whatsapp etc., lançando mão de recursos e expertises indisponíveis aos movimentos sociais contra-hegemônicos, enquanto os partidos de esquerda utilizam táticas da década passada como os “blogs progressistas” que apoiavam os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). O remédio para vencer a desinformação é político. O grande problema é que a própria esquerda abandonou o trabalho de base. A esquerda, no Brasil, cresceu a partir da construção de redes sociais de solidariedade offline, e isso foi trocado, em grande medida, pela política partidária e seus acordos, principalmente durante os governos Lula e Dilma. Se concordamos com a existência de fandoms políticos, as estratégias neles focadas, através de plataformas digitais e hashtags, são de fato oportunas. Porém, não é usando-as como principal ou único recurso que essas ou novas redes, mais adequadas aos novos desafios, serão reconstruídas – muito menos tentando evangelizar a população a partir da lógica da superioridade moral. Um novo tipo de estratégia deve ser adotada nas redes e fora delas, uma tática politizadora. Acreditamos ter exposto os problemas e desafios, e que as soluções devem ser buscadas a partir desse diagnóstico.
Mestre
em Comunicação Social. Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos
Jornalista,
Doutor em Sociologia. Membro do grupo de pesquisa Obscom/Cepos
ALSHAABI,
Thayer; ARNOLD, Michael V.; MINOT, Joshua R.; ADAMS, Jane Lydia.
DEWHURST, David Rushing; REAGAN, Andrew J; MUHAMAD, Roby; DANFORTH,
Christopher M.; DODDS, Peter Sheridan. How
the world’s collective attention is being paid to a
pandemic:COVID-19 related 1-gram time series for 24 languages on
Twitter.
Março de 2020. Disponível em:
http://pdodds.w3.uvm.edu/permanent-share/covid19-ngrams-revtex4.pd
CAMPANELLA,
Bruno Roberto.
Perspectivas do Cotidiano: um estudo sobre os fãs do programa Big
Brother Brasil.
2010. 207 p. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) –
Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Disponível em:
http://www.compos.org.br/data/teses_e_dissertacoes/6b56215cf6a29e8080ec8e6e8a733491.pdf
Raphael
(6)
e Campanella (7)
defendem a inserção da EPC nos estudos sobre o reality show,
alegando que “without
understanding the political-economic forces that drove the spread of
these genre, textual and audience studies may risk reifying it as an
expression of audience demand, or of their creators, or of a
cultural, discursive, or ontological shift unrelated to the needs of
those who run the television industry.”
(RAPHAEL 2004, p.119)
RAPHAEL,
Chad. The political-economic origins of Reali-TV. In: MURRAY, Susan
& OUELLETTE,
Laurie (eds.).
Reality TV: Remaking Television Culture. 2.
ed. New York: NYU
Press, 2009, p. 123-140. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/295869264_The_political-economic_origins_of_Reali-TV
CAMPANELLA,
Bruno Roberto. Investindo no Big Brother Brasil: uma análise da
economia política de um marco da indústria midiática brasileira.
E-Compós,v.
8, 11, 2007. Disponível em:
https://www.e-compos.org.br/e-compos/article/view/133
GRAMSCI,
Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol 3. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012.