Socicom entrevista Marcos Dantas sobre CGI.br

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Por Ruy Sardinha Lopes (Socicom)

Em 2013, como consequência de um dos debates ocorridos no V Seminário de Integração Institucional Socicom a Socicom se candidatou a compor o colégio eleitoral do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGi) por entender ser de fundamental importância a presença de um representante das Ciências da Comunicação na vaga destinada às Sociedades Científicas no respectivo Comitê. Como resultado dessa iniciativa, que contou com o engajamento de nossas entidades afiliadas, foram eleitos o Prof. Dr. Marcos Dantas (titular) e Sérgio Amadeu (suplente).

Tal aposta não poderia ser mais acertada. Eleito em julho de 2014, o professor Marcos Dantas, nosso entrevistado, nos oferece um excelente panorama da atuação desse Comitê e de sua importância para as questões relacionadas à gestão da Internet e o Direito à Comunicação em nosso país, bem como a contribuição que a academia vem fornecendo para a formulação de políticas públicas de comunicação.

O professor Marcos Dantas é Professor Titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). Doutor em Engenharia da Produção (COPPE-UFRJ), integra o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), preside o Capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (Ulepicc-Br) e coordena o Grupo de Trabalho da SOCICOM sobre regulamentação dos meios de comunicações.  Já exerceu os cargos de Secretário de Educação a Distância do MEC (2004-2005), Secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações (2003), entre outras funções públicas. É autor, entre outros livros e artigos, de A lógica do capital-informação, Trabalho com informação eComunicações, Desenvolvimento e Democracia.

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Professor Marcos Dantas, o senhor foi eleito em agosto de 2014 como representante da comunidade científica e tecnológica, tendo o professor Sérgio Amadeu como suplente, no Comitê Gestor da Internet no Brasil, poderia nos falar da importância e atuações deste Comitê?

O CGI.br é uma organização de natureza pública não-estatal, sustentada por recursos privados exclusivos que, conforme decreto presidencial, deve estabelecer diretrizes estratégicas para uso e desenvolvimento da Internet no Brasil, definir políticas de alocação de nomes e números de domínio em território brasileiro, representar o Brasil em foros internacionais e outras questões relacionadas à operação da grande rede em território nacional. Na medida em que a Internet tem hoje presença realmente capilarizada na sociedade, tendo-se tornado uma ferramenta essencial para os negócios e para a vida cotidiana, o CGI deve ser uma instância também decisiva no estabelecimento de políticas e normas relativas à rede, respeitados, claro, os poderes institucionais próprios do Estado brasileiro, do qual seria também parte no sentido gramsciano de Estado ampliado.

A representação científica e tecnológica no CGI nunca teve representantes mais diretamente vinculados às Ciências da Comunicação, como é o caso, agora, do senhor e do professor Sérgio Amadeu. Qual a importância dessa representação?

De fato. Devemos ter em mente que a Internet nasceu em um ambiente de Engenharia e Ciências Matemáticas e deve todo o seu desenvolvimento inicial, inclusive normativo, à cultura predominante nesse ambiente, caracterizado pela lógica cartesiana, pela objetividade e neutralidade positivistas. Até poucos anos atrás, o ambiente da Internet era frequentado, se podemos falar assim, por uma população razoavelmente homogênea, escolarizada, relativamente culta, aberta ao debate racional iluminista, ao agir comunicativo que, imaginava-se, conduziria à utopia habermasiana do consenso. Esse cenário já está superado. A capilarização da Internet, o acesso a ela por milhões de smartphones nas mãos de qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, reduziu-a a verdadeiro decalque da sociedade real em que vivemos, com seus conflitos, diferenças de classe, de raça, religiosas, culturais das mais diversas, até futebolísticas, diferenças etárias e sexuais, seus valores e preconceitos, suas patologias, sem falar dos poderosos interesses do capital financeiro, tudo isso que faz de qualquer sociedade contemporânea esse espaço de competição e disputa que preferimos ver resolvidas por meios civilizados, democráticos e legais, mas, bem sabemos, nem sempre é assim. Não raro, a violência se impõe e precisamos também da coerção do Estado até para nos protegermos dela, a violência. É onde entra o Cientista Social. Somos naturalmente preparados para estudar e tentar, se possível, apresentar soluções que, se não vão resolver a natureza da sociedade dividida em classes, ao menos permitam o convívio político dos interesses conflitantes. Para nós, o conflito é, por assim dizer, natural. Na atual etapa da evolução da Internet, quando ela já está entrando na sua vida adulta, penso que será cada vez mais importante e necessária a presença no CGI, de sociólogos, educadores, comunicólogos, economistas e outros perfis acadêmicos que olham para sociedade como objeto de estudo e estão por isso capacitados a entender os problemas com os quais já nos defrontamos.

Em que medida a academia tem contribuído para a formulação de políticas públicas da Internet no Brasil?

O Marco Civil da Internet resulta de uma contribuição acadêmica fundamental: seu projeto básico nasce no Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Fundação Getúlio Vargas. Certamente, a Sociedade Brasileira de Computação (SBC) e a Rede Nacional de Pesquisa (RNP), assim como as pesquisas nos laboratórios de Engenharia de muitas universidades brasileiras foram essenciais para a expansão da Internet no Brasil, até mesmo para a formação e consolidação do CGI.br. Nos últimos tempos, na medida em que a Internet veio se tornando esse decalque da sociedade do qual falei antes, as nossas Escolas de Comunicação começaram, também, a abrir crescente espaço para a discussão das questões culturais emergentes, bem como as pesquisas em Educação já investigam os ganhos, bem como os riscos, da literal invasão das salas de aula pela Internet, queira o professor ou não. Acho que ainda há muito o que entender aí. E vejo o CGI como o local apropriado de formulação de políticas públicas a partir do avanço do conhecimento sobre a Internet nesses diferentes campos das Ciências Sociais Aplicadas.

Sabemos que o Comitê é uma entidade formada por vozes muito díspares, composto por representantes do governo, do setor empresarial, do Terceiro Setor e da comunidade científica e tecnológica, além de um represente de notório saber em assuntos da internet. Poder-nos-ia discorrer sobre as dinâmicas de seu funcionamento e as disputas de interesses entre os setores aí representados?

O CGI foi organizado conforme uma fórmula muito cara à comunidade interneteira original, de relativa independência ante o Governo e forte representação dos diferentes segmentos da sociedade civil. Na prática, o Governo tem nove representantes e a sociedade, onze, além de um cidadão nomeado pelo seu “notório saber”. Como sabemos que a sociedade é o espaço da luta de classes e outras lutas, a composição do CGI acaba expressando as diferenças que se manifestam na sociedade real. Na maior parte, na grande parte dos casos, as questões podem ser resolvidas sem muita polêmica. De fato, são questões sobre as quais todos temos alguma visão básica comum. Mas existem questões que envolvem interesses sociais contraditórios e a discussão acaba muito acirrada. A maior parte dessas questões são as que envolvem os interesses empresariais, principalmente os das operadoras de telecomunicações. Um exemplo é o debate sobre o princípio da neutralidade de rede, a respeito do qual não há unidade na sociedade civil, nem mesmo entre os representantes do Governo (afinal, o Governo também expressa as divisões na sociedade). A característica multissetorial do CGI torna quase impossível uma decisão por maioria de votos. Quase tudo precisa ser resolvido por consenso, exceto quando se forma alguma maioria quase consensual. Por isso, se há impasse, a discussão tende a se prolongar reunião após reunião. Não deixa de ser um exercício de paciência e inteligência.

O Brasil sediou mais recentemente dois grandes eventos mundiais sobre a Internet – o NETMundial, em abril de 2014, e o Fórum de Governança da Internet (IGF), em novembro de 2015 – e, da mesma forma, a aprovação pioneira do chamado Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014) vem adquirido grande protagonismo e servindo de modelo a outras experiências internacionais. Qual o papel das políticas públicas brasileiras na discussão internacional sobre a gestão da Internet?

Esse é um ponto que todos os brasileiros podem se orgulhar, até se envaidecer. O Brasil está entre os países líderes na construção de uma, chamemos, “nova ordem mundial da Internet”. Nisto, destaque-se também o papel do Itamaraty, com uma política muito segura nessa área, sobretudo muita clareza na defesa dos interesses nacionais articulada a necessárias alianças internacionais. O Brasil é visto, por outros países, como um modelo a ser observado e acompanhado, com destaque para a constituição do CGI e para o Marco Civil da Internet, uma lei mundialmente pioneira. E vários dos meus colegas de CGI são bem atuantes nos foros internacionais e reconhecidos na comunidade  mundial. A questão central aí, é o literal controle da Internet pelos Estados Unidos, através da ICANN, uma instituição privada que dirige internacionalmente a grande rede, com sede na Califórnia e relações contratuais com o Governo estadunidense. Os principais países, hoje em dia, condenam esse controle e buscam construir um novo marco legal que internacionalize, de fato, o governo da Internet. Sim, direi “governo”, não “governança”. Não é fácil. Por óbvio, os Estados Unidos não estão dispostos a largar o osso… Envolto num suculento filé. Por outro, entre os próprios países mais envolvidos nos debates existem muitas diferenças de interesses e objetivos. A China, por exemplo, tem uma visão bem distinta da brasileira ou da europeia, ainda que todos possam parecer do mesmo lado quando a questão é a redistribuição do poder sobre e na Internet. Os IGFs foram constituídos para servirem de foro para esse debate. Mas desde o primeiro, muito pouco se avançou. No último, que você cita, realizado em João Pessoa, com quase nula cobertura da mídia brasileira, esse debate foi muito explícito e, não raro, duro. Num dos painéis, um delegado dos Estados Unidos afirmou que não via com bons olhos a direção da Internet sair de seu país para Genebra, sede da controvertida FIFA. Ao que um representante suíço retrucou, lembrando que os Estados Unidos não conseguem controlar nem seus próprios bancos, haja visto a crise de 2008…

O Marco Civil da Internet (MCI), aprovado após 4 anos de tramitação no Congresso Nacional, é tido por muitos especialistas como um avanço no setor, legislando, inclusive, sobre setores sensíveis como a “neutralidade de rede”. O senhor poderia nos apontar as principais conquistas e contradições desta lei?

A principal conquista é, certamente, o próprio Marco Civil, primeira lei, em todo o mundo, que tenta regular a Internet reconhecendo os direitos civis de seus usuários, sejam empresas ou simples cidadãos, e definindo o papel normativo do Estado nacional, sobretudo em termos jurídicos. A definição da neutralidade da rede é um princípio fundamental. Outro princípio, é a exigência de ato jurídico para a remoção de sítios ou perfis que possam ser considerados lesivos à pessoa ou a interesses empresariais. Por outro lado, a lei enfrenta um sério problema: a natureza transterritorial da Internet e, daí, dos grandes provedores ou fornecedores de serviços, quase todos sediados nos Estados Unidos, muitos deles sem sequer um pequeno escritório no Brasil. A aplicação da lei tem-se mostrado difícil diante da arrogância colonialista de alguns desses prestadores, a exemplo notório do Facebook.

O parágrafo 1º do art.9 do MCI prevê que em sua regulamentação devam ser ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações. Como o CGI tem se feito “ouvir”? Que propostas de regulamentação têm sido elaboradas no âmbito do Comitê?

O CGI está há meses discutindo a regulamentação, pretendendo apresentar uma proposta ao Ministério da Justiça que, no Poder Executivo, vem centralizando essa elaboração. Devido àquelas contradições às quais me referi, o processo tem sido demorado e a construção de um consenso mostra-se difícil. O pomo da discórdia é uma definição precisa do que seja “neutralidade da rede”. Tenho defendido, nas discussões, que se essa definição não for muito objetiva e clara, a cada problema, ficará na dependência do conhecimento e das intenções de um juiz qualquer, assumir alguma definição ad hoc. O CGI elaborou, internamente, uma definição que me parece muito boa, mas ainda está em debate. O Ministério da Justiça já apresentou o seu anteprojeto, no qual, penso, a definição permanece vaga, não indo muito além do que já diz a lei. 

Outro ponto polêmico que povoou o noticiário nacional em 2014 e 2015, gerando inúmeras críticas foi o acordo entre a presidente do Brasil Dilma Rousseff e o sócio controlador do Facebook Inc., Mark Zuckerberg, no qual teriam acertado um acordo para expandir o projeto Internet.org no Brasil. Como o senhor avalia esse projeto? Como o CGI se posicionou diante de tais polêmicas?

Diga-se, a bem da verdade, que não chegou a existir um acordo entre o governo brasileiro e o Facebook. Aconteceu uma conversa e tanto Zuckerberg quanto Dilma acreditaram que estavam fazendo um bom marketing recíproco. É possível que a presidenta já tenha percebido que, para ela, o marketing não foi tão bom assim… O encontro serviu para levantar a polêmica em torno do Internet.org. O assunto foi muito discutido no CGI. Os representantes do Terceiro Setor e os da Academia não tiveram dúvidas em rejeitar qualquer possibilidade de associação entre o Governo e o Facebook via Internet.org, mesmo reconhecendo que, como empresa privada, o Facebook não poderia ser impedido de desenvolver o projeto, caso quisesse. Lembremos, no entanto, que a Índia expulsou de lá o Internet.org… O CGI acabou não assumindo qualquer posição a respeito, desta vez devido ao posicionamento unânime do bloco governamental, contrário a qualquer manifestação. Toda essa discussão assim como as demais podem ser acompanhadas nas atas razoavelmente detalhadas das nossas reuniões, muito bem elaboradas pela Secretaria Geral do CGI. As atas são de acesso público no sítio do CGI.br.

Que agenda e desafios o senhor antevê para a discussão da Internet e ações do CGI em 2016?

No plano internacional, prossegue o debate sobre uma nova ordem mundial para a Internet. No plano nacional, acho que muita coisa vai depender dos desdobramentos da atual crise política. Inclusive, dependendo da mudança, ou não, de Governo, pode mudar toda a bancada governista no CGI.br. E eu não seria otimista quanto ao futuro… Nota-se um recrudescimento, no Congresso, de propostas reacionárias e anti-democráticas de controle da Internet. O relatório da CPI dos Cibercrimes, em debate no momento em que estamos aqui conversando, causa-nos muita preocupação. Se suas sugestões vierem a virar lei, retrocederão algumas das mais importantes conquistas do Marco Civil, conquistas estas que nos tornam admirados em todo o mundo. Mas é como eu disse: a Internet, hoje, espelha os conflitos reais na sociedade. Os setores conservadores, reacionários, repressores estão se organizando para regulamentá-la conforme seus interesses e visão de mundo. Penso que, apesar dos avanços do Marco Civil, os setores democráticos e progressistas precisam também entender que a Internet não é mais um problema de “governança” mas de “governo” e vai demandar, ou já está demandando, um avançado projeto democrático de regulação. Os conservadores estão preocupados com as patologias sociais, pretexto para seus projetos repressivos. Acho que o pensamento progressista deve começar a se preocupar, e muito, com o crescente controle da Internet por organizações mediático-financeiras, a exemplo do Facebook, do Google, Microsoft etc., em estreita relação com o Governo imperial dos Estados Unidos.

O senhor é também o atual presidente do capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultural (ULEPICC-Br), entidade científica filiada à SOCICOM. Em sua opinião qual a importância da articulação dessas entidades por meio de uma Federação, como a SOCICOM, na consolidação de um ambiente informacional democrático e inclusivo no Brasil? Que iniciativas e cooperações poderiam ser estabelecidas entre a SOCICOM e o CGI?

Boa pergunta. Uma das principais atividades do CGI tem sido a realização de estudos sobre a internet, seus usos, sua penetração na sociedade brasileira. Podemos pensar na possibilidade de o CGI se apoiar nas pesquisas e no conhecimento do campo das Comunicações para desenvolver estudos qualitativos sobre a cultura brasileira em tempos de Internet.

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