Por Edson Ramos de Oliveira Costa*
Todos assistimos filmes, séries e outros programas audiovisuais – aparentemente, isso não vai mudar tão cedo. Mas nem todos assistem mais televisão – aparentemente, isso não pode mais ser mudado. De acordo com o colunista Ricardo Feltrin, do UOL, o Netflix teve um faturamento de 1,1 bilhão de reais no Brasil em 2015 (os números são estimados por fontes dele no mercado financeiro já que empresa não divulga seus ganhos fora dos Estados Unidos)¹.
Esse faturamento está acima do SBT, cuja expectativa de faturamento para o ano passado era de 850 milhões de reais; e muito acima da Rede Bandeirantes, cuja expectativa era de 450 milhões de reais. Estima-se que o Netflix tenha quatro milhões de assinantes no Brasil – alcance muito menor que o desses canais de TV aberta, e um faturamento expressivamente maior.
E não é apenas no nosso país. A agência americana ComScore realizou uma pesquisa em 2015 no México, Argentina, Colômbia, Chile, Peru e Brasil². Foi constatado que 81% do público que consome vídeos em plataformas de streaming (pagas como Netflix, e gratuitas como YouTube), e apenas 71% consomem TV aberta. Especificamente no Brasil, a proporção é de 82% para o streaming, e de 73% para a TV aberta.
Num primeiro momento esperar-se-ia que as empresas dos monopólios tradicionais tentassem simplesmente se adaptar novo formato que surge no mercado, mas a postura que essas empresas têm assumido é de combate às mudanças. E para contrariar ainda mais as expectativas, as empresas dos monopólios tradicionais têm buscado o estado para brigar por elas, tentando impor mais regulamentações às plataformas de streaming de vídeo. Todas essas mudanças no funcionamento do mercado podem ser muito menos democratizantes do que parecem. Aparentemente trata-se apenas de uma briga entre grandes capitais, entre formas diferentes de fazer um monopólio.
Já vimos isso quando as operadoras de telefonia móvel decidiram brigar com o Whatsapp por considerá-lo uma operadora de telefonia móvel pirata. Vimos isso também na briga dos taxistas com o Uber. Agora é a vez das emissoras de TV por assinatura partirem para o confronto. Os clientes desse serviço já vêm diminuindo desde 2014, e as empresas concluíram que o Netflix é o maior culpado. De acordo com Feltrin (2016), elas estão preparando um grande lobby em Brasília para que o governo dificulte a vida do Netflix³.
As medidas propostas são: exigir que a plataforma de streaming tenha que pagar o Condecine (uma taxa de três mil reais sobre cada título do catálogo); obrigar a plataforma a ter um mínimo de 20% de seu conteúdo composto de obras nacionais (desde 2011, as emissoras de TV por assinatura precisam ter pelo menos 30% de sua programação com conteúdo brasileiro); cobrar do Netflix o ICMS pelo serviço prestado; cobrar taxas extras pelo volume de dados gerados.
Tudo isso pode realmente atrapalhar o Netflix? Sim, pois certamente fará com que as assinaturas fiquem mais caras (hoje, o plano mais barato sai por 20 reais). Tudo isso é novidade? Não. Em setembro de 2015 o Congresso Nacional aprovou cobrança de ISS sobre a plataforma, mas o projeto ainda precisa passar pelo Senado. Tudo isso fará as emissoras de TV por assinatura recuperarem mercado? Provavelmente não. Quando o público muda seus hábitos nunca é por uma única razão – além de o Netflix ter um serviço melhor e mais barato, as pessoas podem ter aberto mão de pagar assinatura de TV por conta da atual crise econômica.
Outro forte fator é o cultural – a própria concepção de Televisão pode estar mudando. A tela grande, no centro da casa, de onde emanava toda informação e entretenimento para se consumir em grupo parece ter perdido protagonismo. Hoje cada um tem a sua própria tela, menor, mas interativa. A própria ideia de programação, de ter hora e lugar fixos para assistir uma série ou um programa, é algo que os adolescentes de hoje nem conseguem entender. Ainda que seja apenas num nível psicossocial, sem muita mudança nas bases políticas e econômicas, a chamada cultura da convergência (JENKINS, 2009) parece estar incomodando de verdade os mercados midiáticos tradicionais.
Inclusive, o alto volume de dados consumidos para assistir filmes e séries pelo Netflix é uma das justificativas que as empresas provedoras de internet usam para querer limitar as franquias de dados na banda larga fixa. E a Agência Brasileira de Telecomunicações (Anatel) concorda com elas4. Mas é preciso lembrar que as provedoras de internet também atuam no mercado de TV por assinatura.
Ninguém nunca admitirá que é por causa específica do Netflix, porque o marco civil da internet brasileira proíbe cobrar valores diferentes com base na natureza do conteúdo para evitar discriminação. Se não dá pra cobrar mais de quem usa Netflix, então o jeito é limitar e cobrar mais caro de todo mundo. É fato que o Netflix domina o streaming pago de vídeos na internet, embora a internet só esteja acessível a menos da metade da população mundial5.
O velho de novo
Isso quer dizer que o Netflix chegou para dominar de vez o mercado audiovisual? Talvez não. A empresa indiana Dish Flix, lançada no ano passado e já tendo 17 milhões de usuários, está planejando entrar no mercado brasileiro. O sistema na Índia funciona da seguinte forma: depois de comprar um receptor e contratar uma mensalidade de 100 rúpias (cinco reais, no câmbio de 13/07/2016), os clientes recebem o conteúdo via satélite. A pretensão é manter os preços competitivos no nosso país6.
Também devemos lembrar-nos do Popcorn Time que está de volta – a plataforma é gratuita, com código aberto, e usa plugin em Torrent7. É ilegal? Depende. A plataforma original, que era argentina, acabou fechando com a ameaça dos estúdios produtores. Porém, já que o código era aberto, várias novas versões aparecem e desaparecem ao redor do mundo. Dessa vez, a plataforma original voltou e mais avançada. A legislação sobre direitos autorais muda de um país para o outro: no Brasil não é crime divulgar cópias de um produto cultural desde que não haja nenhum tipo de monetização nessa divulgação. Logo, o Popcorn Time está equilibrado no fio da navalha da lei.
O próprio Ministério da Cultura está planejando criar uma plataforma de streaming de vídeo!8 Ou pelo menos estava antes da morte e ressurreição… A ideia era criar o “Netflix público” para disponibilizar as produções audiovisuais financiadas por meio do Programa de Incentivo à Cultura. Bela ideia, mas se esse nova versão “diet” do MinC irá executá-la ainda não dá para saber.
Mas, ainda que essas propostas sejam interessantes para evitar a exclusividade do Netflix, dificilmente poderão alcançar seu nível de mercado. Uma vez que a maioria esmagadora do público se concentra em uma rede, ela tende a ter mais poder barganha com as produtoras, e até de investir em produções próprias. Por sua vez, isso só trará ainda mais público. É compreendendo essas dinâmicas que De Marchi (2011) aponta esses mercados em rede como essencialmente monopolistas – algo que começa com os telégrafos e vem até as redes sociais na internet.
O fato de essas empresas começarem sem regulamentação, de forma discreta, e chegarem a incomodar os monopólios tradicionais das comunicações pode parecer uma prova do grande potencial contra-hegemônico da internet, já apontado por Bolaño (2007). Porém, a abertura dessas empresas no mercado financeiro, a parceria com as grandes produtoras que antes abasteciam apenas emissoras de TV, e a luta contra qualquer regulamentação que ouse ameaçar o monopólio crescente mostram que a lógica comercial do entretenimento é a mesma.
Aliás, as emissoras de TV apelam ao Estado para que façam às plataformas de streaming o que nunca quiseram que o Estado fizesse com elas. Irônico, não? Gerações e discursos diferentes brigando pelo domínio da mesma velha prática. E o cidadão que tem direito à informação e cultura o que faz? A verdade é que todos amam o Netflix, embora a maioria não possa tê-lo. Mas desejar o que não se pode ter soa mais do que familiar.
REFERÊNCIAS:
BOLAÑO, Cesar; HERSCOVICI, Alain; CASTAÑEDA, Marcos; VASCONCELOS, Daniel. (2007). Economia política da internet. São Cristóvão: Editora UFS.
DE MARCHI, Leonardo Gabriel. (2011). Transformações estruturais da indústria fonográfica no Brasil 1999-2009: desestruturação do mercado de discos, novas mediações do comércio de fonogramas digitais e consequências para a diversidade cultural no mercado de música. Rio de Janeiro, 2011. Tese (Doutorado em Comunicação). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
JENKINS, Henry. (2009). A cultura da convergência. São Paulo: Aleph.
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Notas
¹ Disponível em: <http://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2016/01/11/netflix-fatura-r-11-bi-no-brasil-e-ultrapassa-o-sbt.htm>. Acesso em: 11 jul. 2016.
² Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/11/1701904-streaming-ja-e-mais-importante-que-tv-aberta-na-america-latina.shtml>. Acesso em: 11 jul. 2016.
³ Disponível em: <http://olhardigital.uol.com.br/pro/noticia/empresas-de-tv-paga-preparam-guerra-contra-netflix/54623>. Acesso em: 11 jul. 2016.
4 Disponível em: <https://tecnoblog.net/191752/anatel-franquia-banda-larga-fixa/>. Acesso em: 11 jul. 2016.
5 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/mais-da-metade-da-populacao-mundial-nao-tem-acesso-internet-diz-relatorio-da-onu-17557878>. Acesso em: 11 jul. 2016.
6 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/02/1736214-concorrente-indiano-do-netflix-dish-flix-prepara-entrada-no-brasil.shtml>. Acesso em: 11 jul. 2016.
7 Disponível em: <http://canaltech.com.br/noticia/internet/popcorn-time-ganha-nova-versao-online-57325/>. Acesso em: 11 jul. 2016.
8 Disponível em: <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2015/08/17/internas_viver,592835/ministerio-da-cultura-pode-criar-netflix-so-com-filmes-brasileiros.shtml>. Acesso em: 11 jul. 2016.
* Edson Ramos Oliveira da Costa é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) e integrante do Observatório de Economia e Comunicação (OBSCOM), da Universidade Federal de Sergipe (UFS).