Por Paulo Victor Melo*
Durante quatro dias, a cidade de Salvador, capital da Bahia, se tornou o palco de encontro entre produtores, realizadores, estudantes, pesquisadores e outros agentes culturais do Nordeste interessados no universo das políticas do audiovisual. Com o objetivo de fomentar o mercado de produção audiovisual nordestino e estimular o debate sobre estratégias de fortalecimento e inserção da produção regional em escala nacional, o Nordeste.LAB, que aconteceu entre os dias 20 e 23 de maio, discutiu questões como interfaces entre audiovisual, novas tecnologias e inovação e modelos de negócio; promoveu espaços de troca de experiências e networking; e possibilitou o diálogo entre produtoras e programadoras, por meio de rodadas de negócios, dentre outras atividades.
Para entender o que foi discutido durante o evento e para compreender a realidade das políticas para o audiovisual na região Nordeste e no país, a Rede EPTIC entrevistou André Araújo, produtor cultural, mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, com pesquisa na área de economia do cinema, e um dos coordenadores gerais do Nordeste.LAB.
Na entrevista, André refletiu sobre o cenário da produção audiovisual no Nordeste, analisou as políticas públicas contemporâneas para o audiovisual no Brasil, como a Lei 12.485, e discutiu as possibilidades e limites do diálogo entre produtoras e programadoras.
André falou ainda sobre a presença do cinema brasileiro na televisão, com destaque para a concentração dos processos de produção e distribuição pelas Organizações Globo, sobre o papel das TVs Públicas para o escoamento da produção audiovisual e apontou desafios e perspectivas para a produção acadêmico-científica voltada à área das políticas públicas do audiovisual.
Portal EPTIC – O NordesteLAB reuniu produtores e realizadores audiovisuais de toda a região Nordeste para troca de experiências e projetos. De um modo geral, quais desafios foram apontados para a produção audiovisual na região?
André Araújo – Nos últimos anos, a produção nordestina ganhou visibilidade por conta do incremento da produção e pela participação e premiação de filmes daqui em festivais. Entretanto, se verificarmos o montante de recursos federais que foram direcionados para produtoras com sede na região Nordeste em detrimento de produtoras sediadas no eixo Rio-São Paulo, veremos que a disparidade no fomento à produção dessas diferentes regiões ainda continua bastante elevada. Segundo dados da própria Ancine, entre 1995 e 2013, Rio e São Paulo concentraram cerca de 90% de recursos, um nível de concentração que precisa ser discutido e enfrentado tomando-se a regionalização e a descentralização da produção enquanto prioridades efetivas para o setor.
Entretanto, sabemos que essa ampliação quantitativa e qualitativa da produção nordestina passa pela priorização de ações de outras naturezas, como a ampliação de ações de formação (técnica e na formação de agentes de mercado, como produtores executivos e distribuidoras); o estímulo ao trabalho em rede entre os agentes da região; e a necessidade de conseguirmos acompanhar o desenvolvimento do nosso mercado através de indicadores e mecanismos de acompanhamento processual, apenas para citar alguns desafios que temos de enfrentar.
Representantes de players e programadoras também participaram do NordesteLAB. A partir da experiência das rodadas de negócio durante o encontro, mas também do ponto de vista da discussão mais permanente, qual o estado da arte do diálogo entre produtores nordestinos e programadoras, que, em geral, estão situadas nesse eixo Rio-São Paulo?
Percebemos que ainda existe um distanciamento entre as produtoras nordestinas e as programadoras localizadas em outras regiões do país. E o distanciamento geográfico é uma justificava importante para entendermos essa dificuldade da produção local ser escoada. Com a proximidade entre produtoras do eixo Rio-SP com os escritórios das principais programadoras e agentes de financiamento do país, sabemos que existe lá um ambiente muito mais propício para diálogo e fechamento de negócios. Por isso, pretendemos reduzir essa distância justamente a partir do fortalecimento de eventos de mercado locais, e também tentando incentivar a participação de produtoras locais em eventos de mercado de amplitude nacional e internacional.
Dados da ANCINE mostram que apenas no mês de abril mais de mil produtoras se registraram na Agência, sendo 10% do Nordeste, e que, em termos de salas de exibição, a região cresceu 50% nos últimos cinco anos. Você acredita que a política pública nacional tem apontado para uma descentralização efetiva no segmento ou ainda é necessária uma política mais incisiva que dê conta de valorizar e democratizar o que é produzido tanto no Nordeste quanto nas demais regiões do país?
Nos últimos anos a descentralização da produção tem sido colocada como um ponto importante nas políticas de fomento ao setor, com a criação, por exemplo, de editais e cotas específicas para determinados estados/regiões, mas acredito que ainda não temos a regionalização/descentralização como prioridade estratégica.
Além disso, acredito, também, que políticas locais e regionais, implementadas pelos próprios estados do Nordeste, são primordiais para que a produção dessa região seja fortalecida. O papel da ANCINE e da SAV [Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura] nesse processo é importante, mas sem ações locais que complementem e fortaleçam políticas dessa natureza – por exemplo, com o fortalecimento de mecanismos locais de financiamento, políticas de fortalecimento de produtoras e de outros segmentos da economia do audiovisual, políticas de formação continuada de técnicos/profissionais, dentre outras – essa descentralização não irá ocorrer de fato.
A meu ver, defenderia a adoção de duas políticas para estimular a produção local: o estabelecimento de cotas efetivas de participação de produtoras de outras regiões (para além do Sudeste) dentro do tempo de veiculação obrigatória de produção independente pelos canais fechados, trazida pela Lei 12.485/2011. E o estímulo à regionalização da produção através da obrigatoriedade de veiculação de produção local independente nas TV’s abertas em todo o Brasil, tendo em vista que a maior parte das TV’s locais ficam presas à programação das chamadas “cabeças de rede”.
E no que diz respeito à ampliação da diversidade de produtores dentro da própria região Nordeste? Também há uma tendência à concentração dentro da região?
Mesmo na região Nordeste, percebemos que alguns estados se sobressaem em detrimento de outros. Estados como Bahia, Pernambuco e Ceará têm adotado ações mais fortes de fomento ao setor, apesar de ainda serem insuficientes (cada estado tendo pontos fortes e pontos frágeis). Se tomarmos a Bahia como exemplo, percebemos que realizadores do interior do estado tem criticado um “soteropolicentrismo” da produção, fazendo referência à concentração de recursos na capital, Salvador. Ou seja, quando falamos em descentralização e diversidade, estamos abordando um universo muito mais complexo que a divisão regional brasileira, e apenas políticas nacionais e locais interligadas podem proporcionar uma produção mais diversa, tanto do ponto de vista cultural quanto do ponto de vista econômico.
Ainda no que diz respeito à política pública nacional, mais precisamente na questão do financiamento e das questões legais e normativas, como está o audiovisual brasileiro em comparação com outros mercados?
Em relação ao financiamento, estamos num momento interessante, pois nunca houve tanto recurso voltado para o setor na história do país. Acredito que essa política de estímulo e fomento possibilite a ampliação dos agentes de mercado e, naturalmente, a demanda por recursos também acabará crescendo no mesmo ritmo. O desafio para o setor, então, do ponto de vista do fomento à produção, é que o volume de recursos não fique estagnado nos próximos anos.
Mas, para além do volume de recursos, vejo dois principais problemas a serem atentados: em primeiro lugar, o aprimoramento nos mecanismos de tramitação e avaliação dos projetos pela ANCINE, pois há uma crítica recorrente em relação à demora na avaliação dos projetos e na liberação dos recursos para projetos. E outra questão é o estímulo a outros segmentos do setor, como a distribuição e a exibição, que também são atendidas por mecanismos específicos, mas ainda não na mesma proporção que o setor da produção/ realização.
Outros dados, também da ANCINE, mostram que 21% dos filmes exibidos na televisão aberta brasileira são nacionais. No que diz respeito ao escoamento da produção via TV, a concentração também se verifica ou há uma política de descentralização?
Esses números não podem ser enxergados e analisados sem uma analise qualitativa, especialmente de três aspectos: quais filmes são esses? Quem produz esses filmes? E onde esses filmes são veiculados? Três questões que são intimamente relacionadas entre si, pois uma análise mais detalhada dessa questão talvez confirme uma impressão minha que a maior parte desses filmes são veiculadas na Rede Globo, coproduzidas pela Globo Filmes, e produzidas por produtoras que possuem relação direta com a Rede Globo. Além dela, apenas a EBC (através da TV Brasil), dentre as TV’s abertas de alcance nacional, possui hábito de exibir cinema brasileiro. Em outras TV’s como a Record, o SBT, ou a Bandeirantes, o cinema brasileiro praticamente não existe. Então, falar de concentração parece até redundante. A ocupação do cinema brasileiro na TV aberta ainda é uma bandeira importante, especialmente se for aliada com o estímulo à inserção da produção independente nacional nessas janelas de exibição.
A Lei 12.485, em vigor desde o final de 2011, estabelece cotas de produção nacional e independente na televisão por assinatura. Qual a sua avaliação até aqui sobre a implementação da Lei? Em que medida ela tem contribuído para potencializar, de fato, a produção audiovisual independente em nosso país?
De forma geral, a avaliação é positiva. Todos os agentes do campo audiovisual – sejam produtoras, sejam programadoras, seja a própria ANCINE – ainda estão apreendendo a lidar com essa nova conjuntura. Mas percebemos que a aprovação e regulamentação dessa lei tem sido um fator importante para fortalecer o setor e estimular a entrada de novos agentes, pois existe uma demanda concreta para ocupação desse espaço. O esforço dos agentes locais – pensando enquanto Nordeste – deve ser, então, o de disputar sua entrada nesse espaço, avaliando inclusive, a meu ver, a criação de cotas de produtos regionais dentro do tempo obrigatório. Ainda estamos no começo da implementação da lei e precisamos acompanhar de perto os seus impactos, inclusive através desses pontos de vista: o do fomento à produção independente e o do incremento de outros centros de produção.
Sobre a Televisão Pública, um dos seus papéis é, justamente, o de dar vazão ao que é produzido de forma independente pelos quatro cantos do país. Esse papel vem sendo desempenhado de forma satisfatória pela TV Brasil e pelas emissoras públicas estaduais?
No Nordeste.LAB, por exemplo, a TV Brasil foi um dos principais players presentes, dispostos a licenciar produtos prontos. Isso é algo importante, pois sabemos que existe uma grande quantidade de longas e curtas metragens finalizados, e que pouco foram exibidos em janelas de grande visibilidade, como a TV. Do ponto de vista local, o Irdeb [TV pública da Bahia] lançou um edital de licenciamento há pouco menos de dois anos, uma iniciativa interessante para ocupação da sua grade de programação por produções locais. Não sei até que ponto essa ação se converteu no efetivo licenciamento de produtos, mas as TV’s públicas estaduais, certamente, poderiam cumprir um importante papel para desenvolver produções locais, saindo de uma lógica de produtora de conteúdo, e passando para um papel de transmissora de conteúdo produzido por produtoras independentes.
E no que diz respeito à pesquisa científica, qual o espaço que o tema das Políticas Públicas para o Audiovisual tem ocupado nas universidades brasileiras? Quais são os principais desafios nesse aspecto?
Ao mesmo tempo em que é necessária uma analise interdisciplinar entre os campos do cinema, da economia, da administração e das ciências sociais – apenas pra citar alguns exemplos – para se entender a dinâmica de políticas de fomento ao setor, essa é uma área de estudos que acaba sendo negligenciada por todos esses campos. Se verificarmos os anais do principal congresso de estudos em cinema do país – o encontro da Socine [Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual] – perceberemos que os estudos voltados para a dinâmica produtiva e a análise de políticas públicas ocupam a minoria do espaço da programação. Isso não quer dizer que não existam pesquisas e grupos dedicados a esse universo, que se localizam especialmente no campo da economia política da comunicação e da cultura – especialmente atentos aos processos de regulamentação do campo da radiodifusão e da internet no país – e em algumas iniciativas de grupos de estudos em economia da cultura. Mas são ainda insuficientes para termos um panorama analítico mais complexo.
O Observatório do Cinema e Audiovisual (OCA) da ANCINE tem grande importância para a divulgação de analises e pesquisas de acompanhamento de mercado, mas percebemos que sua capacidade de produção de dados mais regionalizados ainda é pequena. Recentemente, a iniciativa de implementação de Observatórios da Economia Criativa, numa parceria entre Ministério da Cultura e diferentes instituições de ensino superior do país, aparece como um sopro interessante no estímulo à produção de pesquisas locais, mas poucos foram implementados até o momento. Ou seja, o campo da economia e das políticas públicas para o setor ainda são um grande universo a ser explorado.
Por fim, nos fale como o Nordeste.LAB terá continuidade e quais as suas perspectivas.
Durante o processo de produção do Nordeste.LAB, sempre apontamos que essa seria uma plataforma de encontros, seja entre produtoras e outros agentes de mercado; seja em espaços de formação; seja no estímulo ao trabalho em rede. Assim, acreditamos que a continuidade do Nordeste.LAB perpassa pela ampliação desse objetivo, com o aumento no número de participantes tanto da Bahia quanto de outros estados do Nordeste, quanto pela ampliação de espaços de formação e comercialização. Felizmente, nessa primeira edição já conseguimos ter participantes de 8 dos 9 estados da região, e ela serviu para testarmos formatos e termos uma melhor dimensão das demandas do segmento audiovisual. Estamos em processo de avaliação dos resultados, mas nossa intenção é que ele se torne uma ação anual, tendo atividades preparatórias de formação e um evento de culminância. Aliado a isso, também estamos discutindo a realização de uma ação específica voltada para o campo de pesquisa, articulando academia e agentes do setor a partir de um mapeamento mais sólido do mercado regional, a construção de indicadores e mecanismos de acompanhamento do mercado.
* Paulo Victor Melo é jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do grupo de pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS), vinculado à Rede Eptic.