Por Paulo Victor Melo* (Revista Fórum)
Há muito, a Rede Globo está atenta às críticas que vêm recebendo da sociedade. São tanto críticas organizadas por movimentos sociais quanto manifestações mais dispersas, por pequenos grupos, redes sociais, etc.
Junho de 2013, por exemplo, foi um momento importantíssimo para colocar a Globo – e o conjunto da mídia privado-comercial – em xeque. Quem não se lembra de milhares de pessoas, especialmente jovens, nas portas das sedes locais da emissora gritando: “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”?
Em sintonia com esse grito, uma pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, em agosto de 2013 (no calor das manifestações), apontou o seguinte: 43% dos entrevistados afirmaram não se reconhecer na TV e 25% se veem retratados negativamente. Ou seja, 68% não está satisfeita como é (ou como não é) representada pela mídia privado-comercial brasileira.
A mesma pesquisa apresentou também os seguintes números: 54% dos entrevistados acreditam que conteúdos de violência ou humilhação de homossexuais ou negros, por exemplo, não deveriam ter espaço na TV brasileira. 50% também não admitem programas de “humor” que ridicularizam grupos socialmente vulneráveis.
Frente a esses dados, a uma perceptível ampliação da crítica às suas estratégias de manipulação e a uma queda de audiência, a Globo também não se comporta como boba.
É por isso que recentemente a emissora lançou a peça institucional ‘100 milhões de uns’, em que explicitamente busca dialogar com grupos que reivindicam a diversidade e com os que a criticam. Na peça institucional, a Globo chega a afirmar: “Uns gostam da gente. Uns dizem que não”.
É também por esses motivos que a Globo afastou (até que as coisas sejam ‘esclarecidas’, como está na nota divulgada pela emissora) William Waack, após divulgação de seus comentários racistas em um estúdio da TV. Algo que poucos estão atentando sobre o episódio: os comentários de Waack foram em 2016, quando entraria ao ar para cobrir a eleição de seu amigo Trump. Ou seja, a Globo, que provavelmente já tinha ciência do comentário, nada fez até que o vídeo – um ano depois – chegasse ao grande público.
Na mesma nota em que anuncia o afastamento de Waack, a Globo diz que é “visceralmente contra o racismo em todas as suas formas e manifestações…”
Então, se boba a Globo não é, mesmo com o afastamento de Waack e apesar da afirmação acima, racista ela continua sendo…
Vejamos.
1. Racismo não é somente quando alguém, utilizando uma concessão pública, faz comentário como o de William Waack.
2. Na TV, racismo se expressa também a) na sub-representação do segmento populacional negro; b) na forma como mulheres negras são apresentadas ou retratadas; c) na oposição a políticas públicas afirmativas; d) no silenciamento de demandas e movimentos sociais que pautam a questão racial; e) no reforço de estereótipos por meio de conteúdos da programação.
3. Sobre a sub-representação, basta vermos o espaço ocupado para homens e mulheres negros/as nos telejornais da Globo.
4. Na forma como as mulheres negras são retratadas, não vale questionar o que simboliza a Globeleza, em geral mulher negra jovem, seminua, como estratégia de divulgação de um carnaval a ser comercializado? Sobre esse tema, recomendo o texto da Jarid Arraes: https://www.revistaforum.com.br/2015/01/15/racismo-gente-ve-na-globo/
5. Também sobre as mulheres negras, quem não lembra o nome da novela em que Thais Araújo era protagonista? Da Cor do Pecado! Por que a cor do ‘pecado’ (como algo proibido, ruim) é a pele preta, Rede Globo?
6. Na oposição a políticas afirmativas, a Globo esquece que Ali Kamel, um dos chefões da emissora, escreveu um livro em que se coloca contrário às cotas raciais?
7. No silenciamento de lutas sociais, por que a Globo ignorou tanto as violências do Estado contra Rafael Braga, negro, jovem e pobre? Ou por que a Globo não deu tanta repercussão ao caso de Amarildo?
8. Ainda sobre o silenciamento, como não questionar o pouco espaço dado pela Globo às denúncias contra as manifestações de intolerância contra as religiões de matriz afro?
9. No reforço de estereótipos, não já cansamos dos mesmos papéis ocupados pelos negros e negras nas telenovelas? Também não é repetitivo o ideal de beleza branca que a Globo constrói, por exemplo, por meio de seus programas?
Por tudo isso e por tanto mais, não temos dúvida: a Globo, assim como o conjunto da mídia privado-comercial brasileira, é racista. E é também machista e LGBTfóbica.
O afastamento de Waack, apesar de ser uma medida importante, não pode virar uma cortina de fumaça.
Esse cenário só será alterado quando tivermos uma legislação de comunicação que promova real diversidade e pluralismo, que garanta participação social na fiscalização das emissoras e que coíba manifestações de desrespeito, intolerância e ódio contra os segmentos vulnerabilizados da população.
*Paulo Victor Melo, jornalista. Mestre em Comunicação e Sociedade pela UFS. Doutorando em Comunicação e Política na UFBA. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Obscom-Cepos (Comunicação, Economia Política e Sociedade) e do Centro de Comunicação, Cidadania e Democracia da UFBA.