De dentro da pandemia de 2020. Uma crítica a Byung-Chul Han

César Bolaño*

Também o céu às vezes desmorona

E as estrelas caem sobre a terra

Esmagando-a com todos nós.

Isso pode ser amanhã.

(Brecht)

Não devemos julgar os intelectuais por reações pontuais a eventos inesperados diante dos quais suas teorias se vêm repentina e brutalmente interrogadas. Assim, a primeira reação de Tony Negri frente à invasão norte-americana ao Iraque, ainda no rastro do ataque às torres gêmeas, afirmando indignado que os Estados Unidos haviam rasgado a constituição do império1, mostra sem dúvida uma dificuldade em interpretar o fenômeno com as ferramentas de análise de que dispõe, mas não é por esse motivo que criticamos a sua conhecida – delirante, como dizia Gorz2 – teoria.

Assim, não cabe tampouco julgar o excelente trabalho de Mbembe pela sua afirmação, diante da pandemia, de que “o poder de matar foi totalmente democratizado”3, numa entrevista, aliás, que evidencia, talvez mais do que certos limites do seu enfoque de base foucaultiana, aspectos muito interessantes do seu conceito, extremamente atual, de necropolítica. A ideia de que o isolamento social seja “uma forma de regular esse poder”, assim democratizado, talvez esteja de acordo com o fato de que “as novas tecnologias de destruição estão menos preocupadas com a inscrição de corpos em aparatos disciplinares do que em inscrevê-los, no momento oportuno, na ordem da economia máxima, agora representada pelo ‘massacre’”4.

Em todo caso, não se pode perder de vista que, para o autor, “o principal desafio que nossa época enfrenta é o da refundação do pensamento crítico”, reconhecendo que “a humanidade do ser humano não está dada” mas “se arranca e se cria no decorrer das lutas”5. Como fazê-lo a partir de agora, num mundo de vírus, isolamentos e avanço da extrema direita? Talvez a resposta deva ser buscada em outros grandes representantes do pensamento negro, como Fanon, para quem a sociedade burguesa é simplesmente “uma sociedade fechada, onde não é bom viver, onde o ar é pútrido, as ideias e as pessoas em putrefação. E um homem que toma posição contra esta morte é, em certo sentido, um revolucionário”6. Não é este afinal o desafio do nosso tempo?

Para o filósofo pós-moderno Byung-Chul Han, classe e luta de classes são categorias historicamente ultrapassadas, mesmo na versão também pós-modernista de Negri e Hardt, opondo o “império” à “multidão”. O autor prefere teorizar sobre um “enxame digital”, que se distinguiria da “massa tradicional”, a qual, “como a massa de trabalho, não é volátil, mas sim dotada de vontade … e não constitui um paradigma efêmero, mas sim formações firmes. Com uma alma, unida por uma ideologia, ela marcha em uma direção”7, mas o mundo de hoje seria o dos enxames, da volatilidade… Deixemos para outros essas elucubrações.

O fato é que Han também escreveu sobre a crise da Covid 19, um texto que circulou bem na internet, no qual trata o tema das respostas nacionais à pandemia, considerando que os países asiáticos estariam controlando melhor a situação que a Europa por causa de uma “mentalidade autoritária” que facilitaria a adoção de medidas de vigilância digital que a consciência crítica europeia não permitiria.

Não é que a Europa não tenha adotado também a vigilância digital, posto que se trata de importante instrumento também para regular aquele poder de matar democratizado, mas, segundo o autor, “na Ásia impera o coletivismo. Não há um individualismo acentuado … Ao que parece o big data é mais eficaz para combater o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que estão sendo feitos nesses momentos na Europa. Graças à proteção de dados, entretanto, não é possível na Europa um combate digital do vírus comparável ao asiático”8. A posição do autor é inequívoca: “espero que após a comoção causada por esse vírus não chegue à Europa um regime policial digital como o chinês”9. Em todo caso, “a China poderá agora vender seu Estado policial digital como um modelo de sucesso contra a pandemia. A China exibirá a superioridade de seu sistema ainda mais orgulhosamente. E após a pandemia, o capitalismo continuará com ainda mais pujança”10.

A descrição das políticas em diferentes países é interessante, mas sua reflexão é de um momento inicial, quando a expansão da pandemia nos Estados Unidos, por exemplo, ainda não adquirira a dramaticidade que viria a apresentar logo após. Assim, a avaliação positiva que faz do caso do Japão parece ter sido precipitada. Tampouco são citados países ocidentais aparentemente bem-sucedidos, como Cuba, Venezuela e inclusive a Alemanha, onde vive o autor, de modo que a hipótese central de uma separação entre as respostas à crise no Oriente e no Ocidente, estabelecendo uma oposição de princípio entre liberdade e eficiência respaldada por diferenças de ordem cultural, fica prejudicada, pelo menos enquanto não se conheça o balanço final, após concluído o movimento de expansão global da pandemia, incluindo países importantes como Rússia, Índia e Brasil.

E mesmo que os dados confirmem uma maior adequação da resposta dos países asiáticos, a relação entre autoritarismo e eficácia ainda teria que ser provada. Uma hipótese alternativa, que também precisaria ser testada, poderia ser a de que a capacidade de resposta seria superior naqueles países menos atingidos, ao longo dos últimos 30 ou 40 anos, pelas políticas neoliberais e onde foram mais preservadas as capacidades de intervenção estatal, de planejamento, de mobilização social para fazer frente a crises e catástrofes, de adoção de políticas públicas adequadas de inclusão social etc.

Mike Davis, num artigo com o sugestivo título de “a crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo”, no item não menos sugestivo, “o legado da austeridade”, supõe, de forma mais cuidadosa, a superioridade da resposta chinesa em relação à americana: “daqui a um ano podemos olhar para trás com admiração para o sucesso da China em conter a pandemia, mas com horror ao fracasso dos Estados Unidos. A incapacidade das nossas instituições de manter a Caixa de Pandora fechada, é claro, não é uma surpresa. Desde pelo menos 2000, temos visto repetidamente falhas na linha de frente dos cuidados de saúde”11.

O artigo de Davis faz parte de uma coletânea sobre o tema composta por textos traduzidos ao português de importantes autores marxistas, que deixarei para comentar, pela sua complexidade e importância, em uma próxima ocasião12. Mas todos sabemos bem do que ele fala. Não se trata aqui de desqualificar a discussão, proposta por Byung-Chul Han, das diferenças entre Oriente e Ocidente, um tema, aliás, tratado por Gramsci, por exemplo, na sua definição mesma de sociedade civil. Mas a conclusão do autor – criticando explicitamente a posição de Zizek, que tampouco vou analisar aqui, segundo a qual o vírus colocaria o capitalismo em cheque – não passa de um inconclusivo jogo de palavras:

“O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. … Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”13.

Ou seja, o capitalismo vencerá e o que nos cabe é “acreditar que virá uma revolução humana” para restringir o “capitalismo destrutivo” (não fica claro se existiria outro, não destrutivo, ou se se trata de restringir “radicalmente” o caráter destrutivo do capitalismo, ou ainda se o problema seria apenas com o eficiente capitalismo chinês, oriental) e também a “nossa” mobilidade destrutiva, nós, pessoas dotadas de razão (com toda a ênfase) e preocupadas com o “nosso belo planeta”. Enfim: idealismo conformista, reafirmando a crença numa razão abstrata capaz de regular o capitalismo para controlar o quanto possível seu caráter destrutivo, mas reconhecendo a impossibilidade de superá-lo.

Ora, o que a crise sanitária em curso explicita são justamente os limites do desenvolvimento capitalista, cujos interesses – a valorização tautológica do capital, que redunda na expansão sem limites da forma mercadoria e, com ela, de uma sociabilidade consumista destrutiva, concentração absurda de riqueza, miséria e violência crescentes, destruição do meio ambiente – chocam-se com os interesses humanos, expondo o conjunto dos indivíduos a graves, inéditos e crescentes riscos, os quais ele próprio, por sua lógica imanente, não tem – e demonstra hoje claramente não ter – capacidade de mitigar. Uma lógica destrutiva da qual o reformismo esperançoso de Han não nos livrará.

É certo que o vírus não derrotará o capitalismo, como ele diz, mas provavelmente, ao final da crise, o grande vampiro, pilotado pela ultradireita neoliberal global, retornará ainda mais sedento de sangue. Como apontam Coggiola e Azevedo, numa situação de crise econômica extremamente agravada pela pandemia, “a única saída viável para os trabalhadores e explorados em geral é impor uma centralização compulsória de todos os recursos do país, com base em um único plano social e econômico, sob a mobilização e liderança dos próprios trabalhadores”14, mas isso evidentemente não faz sentido para Han.

Mas se há esperança possível, ela reside justamente não na “revolução humana”, seja lá o que isso quer dizer, mas lá onde nosso autor não quer ver, naquela revolução que, nas palavras de Césaire, outro dos grandes representantes do pensamento negro, “substituirá a estreita tirania duma burguesia desumanizada pela preponderância da única classe que tem ainda missão universal, porque na sua carne sofre de todos os males da História, de todos os males universais: o proletariado”15.

E este deve entender que “o estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação do mundo físico desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana”16. Se, como dizia Mbembe em trecho citado acima, a humanidade do ser humano não está dada, a tarefa do proletariado a que se refere Césaire é hoje, na luta, construir uma nova e livrar-nos do rastro de destruição e morte que o domínio do capital vem semeando.

*Professor titular aposentado do Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Docente do Mestrado Profissional em Economia e Desenvolvimento da Universidade Federal de Sergipe (Propec/UFS), Líder do grupo de pesquisa Obscom/Cepos.

1Antonio Negri. Entrevista publicada na Folha de São Paulo, 30/03/2003 – Caderno A, p. 26. BORON, Atilio (2002). Imperio e imperialismo. Buenos Aires: Clacso faz uma crítica extensa do conhecido livro Imperio, de Negri e Hardt (edição brasileira de 2001, pela Record, Rio de Janeiro). No prólogo à 5ª edição (2004), Borón faz uma série de considerações derivadas do ataque norte-americano ao Iraque, onde cita essa curiosa afirmação de Negri, feita também em entrevista a um diário argentino. Eu mesmo produzi uma crítica ao livro à época (O império contra-ataca), disponível ainda no portal EPTIC <www.eptic.com.br>.

2GORZ, André (1998). Miserias del presente, riqueza de lo posible. Buenos Aires: Paidós. Esta referência foi extraída de LESSA, Sergio (2005), Para além de Marx? Crítica da teoria do trabalho imaterial. São Pualo: Xamã, que faz uma excelente revisão crítica dos trabalhos de Negri, Hardt e Lazzaratto anteriores ao Império, dando-se ao trabalho de “leitura de livros enormes, textos rebuscados e de estilo na maior parte das vezes rococó” (p. 15), pelo que devemos registrar nosso agradecimento.

3Achille Mbembe. Entrevista publicada na Folha de São Paulo, 30/03/2020. In: <https:/ /www1.folha.uol.com.br/cotidiano/coronavirus/> Acesso em 26/04/2020.

4MBEMBE, Achille (2018). Necropolítica. São Paulo: M-11, 2019, p. 59.

5MBEMBE, Achille (2010). Sair da grande noite. Ensaios sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 245.

6FANON, Frantz (1952). Pele negra máscara brancas. Salvador: Editora UFBa, 2008, p. 186.

7HAN, Byung-Chul (2013). No enxame. Petrópolis: Vozes, 2018, p. 30

8HAN, Byung-Chul (2020). O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã. In: Revista IHU Online, Instituto Humanitas Unisinos, 23 Março 2020. Publicado originalmente em El Pais, 22/03/2020.

9Idem

10Idem

11DAVIS, Mike (2020). A crise do coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. In: HARVEY, David; ZIZEK, Slavoj; BADIOU, Alain; DAVIS, Mike; BIHR, Alain; ZIBECHI, Raúl (2020). Coronavirus e luta de classes. Editora Terra sem Amos <www.terrasemamos.wordpress.com>, p. 7.

12Cito apenas os títulos dos artigos e os nomes dos autores para que se tenha uma ideia do conteúdo. Além do texto de Davis citado na nota anterior, constam: “Política anticapitalista em tempos de COVID-19” (David Harvey); “França: pela socialização do aparato de saúde” (Alain Bihr); “Coronavírus: a militarização das crises” (Raúl Zibechi); “Sobre a situação epidêmica” (Alain Badiou); “Um golpe como ‘Kill Bill’ no capitalismo’ (Slavoy Zizek)

13HAN, Byung-Chul (2020), op. cit.

14COGGIOLA, Osvaldo; AZEVEDO, Edgar (2020). Pandemia, crise do capital e luta de classes, mimeo.

15 CÉSAIRE, Aimé (1956). Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1978, p. 69

16FURTADO, Celso (1974). O mito do desenvolvimento. São Paulo: Círculo do Livro, p. 74-75.

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