Pós-Verdade e a Economia Política das Notícias Falsas

*Por Carlos Figueiredo

O termo pós-verdade (post-truth) foi considerado a palavra do ano de 2017 pelo dicionário Oxford. A prevalência de boatos e notícias falsas nas redes sociais, mostrando toda sua capacidade de influenciar as eleições estadunidenses e o plebiscito que definiu a saída do Reino Unido da União Europeia, fez com que a palavra ganhasse relevância no debate público. Os meios de comunicação tradicionais parecem impotentes diante de uma indústria especializada em fabricar boatos. Aquilo que é publicado por sites especializados em mentir parece ter um apelo tão forte perante seu público, que paradoxalmente se considera informado e livre das amarras da grande mídia, a ponto de questionarmos o próprio poder atual da imprensa e seu impacto no debate público.

Embora o termo pós-verdade remonte a pelo menos 1992, quando foi usado pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, ele passa a ser empregado com maior constância a partir da década de 2000, quando é publicado o livro The post-truth era: Dishonesty and deception in contemporary life, de autoria de Ralph Keyes, mais precisamente no ano de 2004. Na era da pós-verdade, de acordo com o autor, os limites entre verdade e mentiras são tênues, a ponto de termos dificuldades de diferenciar honestidade e desonestidade, ficção e não-ficção. Para Keyes, iludir os outros teria tornado-se um desafio, um jogo e ultimamente um hábito. Essa tendência teria surgido, segundo o autor, devido à tendência pós-moderna de relativizar a verdade entre outros desdobramentos. Entretanto, entender o significado de determinado termo da moda mostra-nos apenas a aparência do fenômeno, revelando muito pouco sobre sua essência.

A força das notícias falsas, do nosso ponto de vista, pode ser elucidada a partir das contribuições de duas disciplinas: a Psicologia Social e a Economia Política, mais especificamente a Economia Política da Comunicação (EPC). A Psicologia Social ajuda-nos a entender o poder emocional exercido por boatos no debate público enquanto a Economia Política da Comunicação apresenta-se como ferramenta para entendermos a razão pela qual as redes sociais tornam o ofício de espalhar boatos tão lucrativo. Para entendermos a atratividade dos boatos, portanto, é necessário trazer para o debate um termo tão presente no nosso cotidiano quanto ignorado academicamente: os boatos.

Os boatos são encarados como parte da instância da irracionalidade, mas para Nicholas Difonzo “os boatos são uma atividade de racionalização compartilhada”,e florescem onde há interação, como no caso das Redes Sociais. Acreditar em pessoas próximas, sentimentalmente ou ideologicamente, renova laços sociais, fortalece convicções preexistentes e dificilmente resulta em um desastre óbvio para quem crê, ainda que sua convicção esteja absolutamente equivocada. Boatos são, essencialmente atos de comunicação, ou seja, são tópicos de conversação considerados importantes que circulam entre as pessoas, sendo grande a probabilidade de tratarem de temas considerados cruciais, urgentes e imperativos. Além disso, o surgimento de tais rumores se dá em situações ambíguas, que representam uma ameaça real ou potencial, oferecendo um caminho para que os indivíduos racionalizem e encontrem sentido em situações confusas. Por último, mas não menos importante, os boatos são informações não verificadas. Em um momento de mudanças sociais extremas e disruptivas, são muito os temores dos indivíduos, e inimigos e preconceitos são criados para dar conta dos desafios. Os boatos e a propaganda possuem essa capacidade, embora não se confundam conceitualmente, ambos possuem o poder de oferecer explicações fáceis para um mundo confuso, e podem caminhar de mãos dadas.

A força dos boatos está no fato de que a existência de um motivo para nossos atos é reconfortante, e os rumores oferecem-nos uma explicação pronta, auxiliando os indivíduos a neutralizarem ameaças psicológicas à sua autoimagem, incluindo ideias de cunho moral, político ou religioso defendidas por esses indivíduos. De acordo com Difonzo, “talvez a principal razão pela qual as pessoas acreditam em boatos seja porque eles estão em consonância com os sentimentos, ideias, atitudes, estereótipos, preconceitos, opiniões ou conduta dos ouvintes”. Os boatos passam a servir, então, como a legitimação cognitiva para o preconceito contra grupos políticos rivais, justificando assim a adoção de determinadas tendências políticas. A grande imprensa, apesar de sua função de construir hegemonia, por possuir profissionais cuja função é averiguar e checar fatos; sempre serviu de antídoto para fazer com que determinados boatos fossem desacreditados, mas algo parece ter mudado nos últimos anos.

As tecnologias da informação e comunicação (TIC) têm sido o grande motor da reestruturação do sistema capitalista iniciado na década de 70, resultando no fim do regime de acumulação fordista, e da destruição criativa do sistema, apresentando um forte caráter disruptivo em relação às antigas tecnologias. A Indústria Cultural, em seus diferentes setores e lógicas correspondentes, vêm sofrendo o impacto das TIC desde a década passada com o declínio da circulação de jornais e revistas e, mais recentemente, com a adoção das segundas telas, levando a um declínio da atenção por parte dos espectadores. Ou seja, a mercadoria audiência, nada mais que a atenção dos receptores vendida pelos grandes meios de comunicação aos anunciantes, vem sofrendo um processo brutal de desvalorização nos meios de comunicação tradicionais.

Esse processo tem relação com a procura por rentabilidade para a internet, que foi a grande causa para o estouro da bolha da bolsa Nasdaq em 2000. Havia uma grande euforia nos mercados, em fins da década de 1990, devido à promessa de alta rentabilidade das empresas digitais, levando à abertura indiscriminada de empresas de tecnologia e à correspondente especulação. Entretanto, não existia lucratividade real que justificasse os altos investimentos naquele setor a não ser a busca por lucros exorbitantes por parte dos capitais especulativos. No campo das Indústrias Culturais, a saída para o impasse da economia digital seria, então, a venda de anúncios. Entretanto, a venda de anúncios nas indústrias culturais apresentava a vantagem de fazer parte de uma programação ancorada nos hábitos cotidianos dos receptores, principalmente no rádio e na televisão, enquanto na Internet a venda de anúncios tinha um caráter disruptivo na experiência do usuário, que de repente era confrontado com popups que surgiam em profusão quando os indivíduos ingressavam em determinados sítios da Internet.

Apesar de o modelo de venda de anúncios ter tido origem nos meios de comunicação tradicionais, a saída técnica para o impasse da venda de anúncios e, por conseguinte, da rentabilidade não veio das grandes empresas de comunicação, mas de empresas cujos produtos são sites redes sociais e/ou mecanismos de buscas como Facebook e Google. Combinando o uso de cookies e algoritmos, essas empresas conseguiram oferecer aos usuários uma experiência personalizada no que tange tanto ao conteúdo quando à publicidade. Essa transformação pode ser encarada como uma derrota para as grandes empresas de comunicação que, na Internet, deixam de ser os grandes alvos da indústria dos anúncios publicitários. A solução encontrada pelas gigantes da internet fez com que o antigo modelo de programação da radiodifusão, feito a partir de pesquisas de audiência, que apesar de desenvolvidas a partir de métodos das Ciências Sociais tinham grandes grupos demográficos como alvo, fosse substituído por algoritmos que possuem como objetivo o indivíduo. Para montar essa “programação” individualizada, portanto, os grandes sites de redes sociais rastreiam cada interação feita pelos indivíduos com amigos, e-commerce, sites de notícias etc.

A partir daí, entramos na consequência desses desenvolvimentos para o debate político. Os cookies e algoritmos usados pelos sites de redes sociais formam o que Eli Parisier denomina de bolha dos filtros. Os algoritmos determinam quais notícias, amigos e anúncios publicitários mais aparecem em nossa linha do tempo a partir de nossas interações anteriores. Como há uma tendência de procurarmos justificativas para nossas ideias nos campos político, religioso e moral; os algoritmos acabam criando bolhas nas quais somos super expostos às nossas preferências prévias. A interação com pessoas e conteúdos com ideias afins, tendem a reforçar essas ideias em um círculo vicioso, tornando a internet um ambiente propício para o surgimento de boatos, que se difundem em grande velocidade por redes de indivíduos que partilham das mesmas ideologias.

Outra grande questão é que a internet derruba drasticamente as barreiras de entrada para empresas de produção de conteúdo. Dessa forma, qualquer adolescente pode construir um site com um layout próximo ao utilizado por grandes empresas de comunicação, e ainda imitar o formato do gênero notícia. Como o conteúdo e a publicidade são personalizados pelos algoritmos, os sites de notícias falsas, muitas vezes, recebem o seu quinhão da indústria da publicidade sem precisarem apurar, uma vez que não há fatos a serem checados, e usando pequenas estruturas, o que torna a operação barata. Essas indústrias não são apenas uma ameaça à credibilidade das empresas de jornalismo, mas também à sua rentabilidade, pois podem começar a ameaçar a parte dessa indústria no bolo da publicidade, menor a cada dia que passa.

Além da publicidade, a Indústria Cultural produz também propaganda. As notícias falsas podem ser encaradas como uma nova forma de propaganda, que ganha contornos mais sofisticados com os algoritmos e a emulação de práticas do jornalismo. Um indício dessa hipótese pode ser encontrada na indústria de boatos e notícias no Brasil, que remonta pelo menos 2011 ou 2012. A partir dali, surgiam boatos de que Fábio Luís Lula da Silva, filho do ex-presidente Lula, seria dono da Friboi, ou que o próprio presidente Lula usaria um jatinho de propriedade de seu filho. Notícias comprovadamente falsas, mas amplamente difundidas nas redes sociais, e que não receberam qualquer esforço da grande imprensa para que fossem desmascaradas. Na campanha presidencial de 2014, notícias e perfis falsos para propaganda foram utilizados pelos principais partidos em disputa. A disputa ideológica pelo impeachment e os debates em seu entorno seguem o mesmo padrão. A tendência torna-se fonte de preocupação da imprensa nacional apenas a partir de 2016, após a concretização do impeachment, talvez porque o trabalho sujo já tivesse sido realizado, e a indústria de notícias tenha se tornado um incômodo, minando a credibilidade da grande imprensa e concorrendo pela atenção e, consequentemente, pelas verbas publicitárias.

*Carlos Figueiredo é Jornalista, pesquisador de Pós-Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (PPGCOM/UFS), Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa OBCOM/CEPOS da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

 

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