ULEPICC-Brasil: os desafios atuais

Por César Bolaño*

Este artigo retoma a introdução da proposta de trabalho da chapa Retomada, que disputou as eleições para a direção da ULEPICC-Brasil (capítulo Brasil da União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura), em novembro de 2016. Nos poucos meses que se seguiram à eleição muitas coisas aconteceram que – salvo a chegada ao poder de Donald Trump, tornando o ambiente internacional mais incerto – não mudaram em essência as tendências apontadas naquela ocasião, as quais reproduzo aqui nos próximos três parágrafos.

As graves mudanças políticas pelas quais o Brasil e outros países da América Latina estão passando neste momento devem ser entendidas no interior da longa crise estrutural do capitalismo iniciada nos anos 1970. Neste momento, as consequências da grande recessão de 2008-9 se fazem sentir e esvaem-se as ilusões neopopulistas que animaram boa parte da intelectualidade latino-americana nos últimos 15 anos. Uma direita renovada chega agora ao poder, prometendo aprofundar as políticas neoliberais e descarregar, como sempre, o peso das políticas de ajuste sobre os ombros da classe trabalhadora.

Os grandes meios de comunicação de massa estão no centro de todos esses processos, seja no que concerne a sua função de controle social, publicidade, propaganda, a serviço do Estado e do grande capital monopolista; seja pela sua própria organização como oligopólios concentrados, participantes de alianças globais que se redesenham e aprofundam com a implantação da economia da internet. Recentemente pudemos verificar, no Brasil, a posição tímida, quando não decididamente omissa, do campo acadêmico da Comunicação frente a um processo de ruptura institucional cujo objetivo foi precisamente facilitar o aprofundamento das referidas políticas neoliberais.

A elaboração teórica crítica na linha da EPC, respaldada pela sua organização acadêmica, é, assim, hoje mais do que nunca, essencial. A ULEPICC, desde a sua fundação, como entidade internacional, pautada pelos princípios da Carta de Buenos Aires, assumiu um compromisso com o pensamento crítico e os movimentos sociais, visando a democratização das comunicações, a autonomia cultural e a capacidade de resistência dos povos latino-americanos.

Nosso programa de trabalho – além das questões práticas, relacionadas à organização interna ou às relações institucionais com as diferentes entidades do campo da comunicação, eventos etc. – propunha, por um lado, uma aproximação aos movimentos sociais pela democratização da comunicação e aos diferentes movimentos sociais para os quais as políticas de comunicação e as ferramentas comunicacionais são de particular importância; e, por outro, mecanismos de internacionalização autônomos em relação à ULEPICC dita federal, com a qual propomos uma repactuação visando a democratização dos processos e ações (por exemplo, nos processos eleitorais e de mudança de estatutos, a atual diretoria abandonou a sistemática de consulta universal aos sócios, via digital, em favor de voto em assembleia, o que dificulta enormemente a participação).

Acima de tudo, é preciso garantir toda autonomia para que a ULEPICC-Brasil – cuja legitimidade no campo acadêmico da comunicação sempre decorreu somente de sua capacidade de liderança intelectual e moral, rejeitando todo tipo de hegemonia construída com base em posições assimétricas do tipo centro-periferia – possa realizar os desígnios da Carta de Buenos Aires e as tarefas que o momento exige.

A derrota dos governos neopopulistas da primeira década dos 2000 na América Latina e o avanço da direita neoliberal estão a exigir um reposicionamento e uma autocrítica profunda dos partidos e movimentos de esquerda, especialmente, no que nos interessa, em relação às políticas de comunicação até então adotadas. Por outro lado, os ventos na Europa e nos Estados Unidos sopram ainda mais para a direita, como evidencia a eleição estadunidense de 2016. Nessas condições, a esquerda institucional tem assumido o desconfortável papel de linha auxiliar de projetos neoliberais que se opõem à direita fascista ascendente, como ocorreu nas últimas eleições presidenciais no Peru. No Brasil, a situação é pior, pois os dois projetos de direita foram unificados, com um programa neoliberal na economia e profundamente retrógrado e antiliberal em matérias de ordem social e cultural.

Em que pesem certos momentos de desconforto, a grande mídia brasileira mostra-se perfeitamente satisfeita com essa solução, diferentemente do que ocorre com a sua coirmã estadunidense, impiedosamente desacatada por Donald Trump. O problema é que uma vez aberta a caixa de Pandora da ruptura institucional, que levou à implantação do atual programa de reformas neoliberais, é difícil prever o que o futuro nos reserva, ainda mais se considerarmos os impactos que a eleição estadunidense pode ter em termos de difusão do pensamento dito “conservador”. Nessas condições, o pior que a esquerda parlamentar pode fazer é alimentar a mesma ilusão que a levou, quando esteve no poder, a preservar a estrutura oligárquica do sistema brasileiro de comunicação.

Cabe ao pensamento crítico não simplesmente denunciar golpes e chorar sobre o leite derramado, mas oferecer instrumentos para a compreensão da realidade em toda sua complexidade. A história já nos mostrou recorrentes vezes que a mídia hegemônica não é aliada confiável. Nada conseguiremos em termos de democratização efetiva da comunicação no Brasil senão pela construção da autonomia cultural da classe trabalhadora, o que exige, neste momento, retomar o debate sobre a comunicação popular e alternativa na perspectiva da crítica da economia política da internet.

* César Bolãno é o atual presidente da ULEPICC-Brasil, líder do grupo de pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (OBSCOM-Cepos) e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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