Por uma (crítica da) Economia Política…

Verlane Aragão Santos1

Há uma questão, exposta no debate acadêmico e público no subcampo da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura (EPC), que tem promovido desacordos e falta de entendimentos comuns: o que significa a expressão Economia Política, distinguindo assim a análise desenvolvida a partir de um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores, autodeclarada como crítica em relação ao pensamento comunicacional vigente? Decerto o desenvolvimento da EPC fora2 e dentro do Brasil3 tem se traduzido num quadro bastante heterogêneo, considerando as origens, formação e campos de atuação. Poderemos a partir daí observar diferentes áreas de conhecimento, e consequentemente aportes epistemológicos e metodológicos, porém a ideia de uma economia política, como de uma crítica da economia política, atende a um percurso próprio que precisa ser recuperado e problematizado.

A expressão Economia Política conforma na tradição da ciência econômica, onde é constituída, um conjunto ampliado de autores e perspectivas que vai de  Antoine de Montchrestien, quando em sua obra de 1615, “Tratado de Economia Política”, enuncia primeiramente a expressão, passando por Adam Smith e David Ricardo, proeminentes economistas políticos ingleses, pelo próprio Marx, chegando a Alfred Marshall e Willian Jevons, economistas neoclássicos do final do século XIX. Importante salientar que ao denominar a jovem ciência, a partir da “Riqueza das Nações”, de 1776 de Smith, e definir a preocupação com a riqueza material, a noção de economia política, correspondente a cada uma das obras referidas e das abordagens próprias dentro da ciência econômica, compõe uma dada e particular concepção.

Tomando como referência a obra de Smith, partamos de sua base ontológica. O “homem econômico” é este ethos que caracterizará o comportamento de todos os agentes econômicos (independente de classe, gênero e raça) no interior das relações mercantis. Individualistas, racionais, maximizadores de interesse. Parafraseando Smith (1996), ao buscar o próprio interesse, o lucro, o indivíduo [leia-se o capitalista] cria riqueza para toda a sociedade. Os vícios privados convertem-se em benefícios públicos, para lembrar a “Fábula das Abelhas” de Mandeville. Os filósofos éticos do século XVIII, assim, propunham o casamento entre os “sentimentos morais” e a riqueza material, dispensando os homens do Velho Mundo de terem que responder pelo pecado da usura, questionável nos padrões da moral deontológica escolástica, a ser superada pelo projeto de modernidade em construção.

A obra de Marx propõe novas preocupações, redesenhando os objetos da nova ciência propostos por Smith e seus contemporâneos. O que Marx realizará, primeiro na “Contribuição à Crítica da Economia Política”, de 1859, e depois em “O Capital”, de 1867, é incorporar a sistematização da atividade econômica já realizada, entre produção, distribuição e consumo da riqueza social, afirmando a não dissociação entre essas etapas; e a partir do empirismo de Smith e o método dedutivo de Ricardo propor um método alternativo, o denominado materialismo histórico e dialético, absorvido a partir das contribuições da filosofia alemã, especialmente de Hegel e Feuerbach. Neste ponto, transfigura a economia política de sua época, ou seja, a partir de sua crítica, apontando que o objeto privilegiado da ciência econômica seriam as relações sociais de produção, relações de exploração, ou seja, relações de poder, fundadas na propriedade privada (tem-se aqui a terceira fonte do pensamento de Marx, segundo Lênin (1913), o socialismo francês), na forma de trabalho assalariado, entendidas a partir da totalidade social, de sua constituição no tempo e no espaço – caráter histórico – e de suas contradições (LEFEBVRE, 1975).

O sentido de totalidade não deixava escapar a Marx as dimensões constitutivas das manifestações humanas; seus aspectos objetivos e subjetivos; da organização econômica à sistematização e aplicação das leis. Incorporou fatores extra-econômicos na sua análise, quando apontou o papel da violência imposta na defesa da propriedade e no processo de expropriação na fase inicial da acumulação capitalista ou mesmo quando trata da regulação dos salários. Como insiste Isaak Rubin, Marx introduz a sociologia na análise econômica. Suas categorias são extraídas da própria realidade. A classe trabalhadora, por conseguinte, e diferentemente da concepção liberal, deve ser observada em sua configuração concreta.

Isso não provinha de uma concepção ideal inicial, pois Marx não era um idealista, mas da apreensão da realidade posta, de suas complexidades, de suas diversas dimensões, no contexto de desenvolvimento da divisão social do trabalho, intensificado no âmbito do capitalismo. Marx ao definir o caráter social e coletivo do processo de criação da riqueza e apontar a contradição expressa na apropriação privada dessa mesma riqueza, requalifica o termo economia política. Não é gratuito o fato de que a despeito das obras dos neoclássicos ainda trazerem a expressão Economia Política, a teoria econômica hegemônica dispensará a qualificação política e adotará somente Economia para designar a ciência da riqueza.

Nesses termos, é comum observar na atualidade o uso da expressão Economia Política para abarcar, no sentido mais amplo, o conjunto da produção intelectual e acadêmica de caráter heterodoxo, ou seja, em oposição ao pensamento ortodoxo, liberal, como no sentido mais restrito referindo-se ao pensamento marxiano. Se quisermos ser mais precisos, podemos lançar mão da própria expressão enunciada por Marx, já que o que ele propunha fazer e fez foi uma crítica da economia política, apropriação do pensamento econômico de seu tempo, realizando a derivação das categorias burguesas e fazendo a crítica, como ocorre com a teoria do valor trabalho de Smith e Ricardo, permitindo incorporá-la como base para a sua teoria da mais-valia e ao observar a não validade dos pressupostos e suas implicações na obra desses autores, ao mesmo tempo apontar que se traduziam, segundo ele próprio, na legitimação do capitalismo, identificando assim o caráter ideológico da ciência econômica.

Com o acima posto, gostaria para finalizar essas anotações fazer duas observações. Primeiro: espero que já tenha deixado exposto e argumentado que “economia política” não corresponde à expressão “economia e política”, onde os termos aparecem em complementariedade. Não é uma análise econômica da política, tão pouco uma análise política da economia. A economia política pressupõe a incorporação de um método próprio e de categorias conceituais que nas pesquisas devem ser postos à prova resguardando, como já observado, a busca de contemplar a complexidade dos fenômenos sociais.

A segunda observação, que é muito cara às/aos marxistas que buscam garantir o rigor conceitual e metodológico, a partir de Marx, é a crítica lançada por fontes de todo tipo aos estudos marxistas, de que estes recaem no economicismo. Bem, há duas frentes de ataque já historicamente conhecidas e consagradas. A primeira que com pertinência pode ser feita em relação ao chamado marxismo vulgar, que usualmente apresenta uma análise materialista mecanicista, do tipo determinista causal direto. Inclusive é uma crítica endereçada ao marxismo pelo pensamento conservador4, e não só este obviamente, no intuito de desqualificá-lo, reduzindo-o ao que ele busca fugir. Há outra, que se baseia muito mais no desconhecimento de que economicismo é uma crítica realizada pelo próprio pensamento marxista e crítico em geral ao pensamento neoclássico, liberal, utilitarista, cuja referência básica é o pensamento dos economistas políticos burgueses do final do século XVIII e início do XIX, sem, contudo, apresentar a mesma sofisticação encontrada por Marx. E assim, voltamos a estes. Muito possivelmente para nos lembrar que o que propomos quando afirmamos trabalhar a partir da (crítica) da economia política é envidar todos os esforços para apreender a realidade, despi-la de toda névoa ideológica (inclusive no âmbito da ciência) e transformá-la na direção de uma outra sociedade, onde as opressões de toda ordem sejam superadas.

Notas

1 Professora do Departamento de Economia e dos Programas de Pós-Graduação em Economia (Mestrado Profissional) e em Comunicação da UFS. Doutora em Desenvolvimento Econômico pela UFPR. Vice-líder do grupo de pesquisa OBSCOM/CEPOS e recém-eleita Vice-presidente da ULEPICC-Brasil.

2 Em nível internacional, vide WASCO (2005).

3 No caso brasileiro, ampliado para a América Latina, vide AZEVEDO, SANTOS & MOTA (2016).

4 Um exemplo que expõe o ataque frontal do conservadorismo ao marxismo: https://www.integralismo.org.br/doutrina/o-economicismo-e-o-marxismo-difuso/. Acesso em 22/11/2020.

Referências:

AZEVEDO, Júlio; SANTOS, Anderson & MOTA, Joanne. (2016). “O avanço conceitual do subcampo da Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura a partir da Revista EPTIC”. In.: Revista Comunicação Midiática. Vol. 11, n. 1, pp. 194-208. Disponível em: https://www2.faac.unesp.br/comunicacaomidiatica/index.php/CM/article/view/113.

LEFEBVRE, Henri. (1975). Lógica Formal e Lógica Dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

LENINI, Vladimir. As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm.

MARX, Karl. (1996). O Capital. Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural.

_____. Contribuição para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Edições Mandacaru.

SMITH, Adam. (1996). A Riqueza das Nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural.

WASCO, Janet. (2005). “Studying the political economy of media and information”. In.: Comunicação e Sociedade. Vol. 7, pp. 25-48. Disponível em: https://revistacomsoc.pt/index.php/revistacomsoc/article/view/1345/1327.