Um Brasil sem dados nem imagem, talvez sem voz

Por Marcos Dantas (Valor Econômico)

Em cerca de 1.270 municípios brasileiros, a taxa de penetração da telefonia fixa é igual ou inferior a 3 linhas para cada 100 habitantes: praticamente toda a região Norte, maior parte do Nordeste, parte de Goiás, Minas Gerais etc. Em cerca de 3 mil municípios, é inferior a 10%: restante do Norte e Nordeste, exceto suas capitais e algumas outras cidades; grande parte de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais; centenas de municípios da Região Sul. Em apenas 800 municípios, grande parte no Estado de São Paulo, a taxa é igual ou superior a 20%. Em menos de 50, incluindo apenas três capitais – São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba -, a taxa supera 45%.

Nas comunicações móveis, uma única operadora está presente, com tecnologia 4G, em cerca de mil municípios brasileiros. A segunda maior rede 4G cobre menos de 600 municípios. A terceira, pouco mais de 500. Mas a efetiva presença de uma rede móvel numa região qualquer é função da distribuição e densidade de suas estações rádio-base (ERBs): se o sinal é fraco ou simplesmente não existe é porque a rede de ERBs não suporta o tráfego.

O imenso Brasil é um vazio de ERBs: menos de 80 mil, quase 40% concentradas no Estado de São Paulo. Na grande maioria dos municípios, a cobertura não vai muito além do centro urbano. No entanto, por todo o Brasil, sempre haverá um posto de gasolina, um restaurante, alguma casa ou estabelecimento em qualquer vilarejo de beira de estrada, com linha telefônica, além dos “orelhões”. O STFC (telefone fixo) mesmo onde é baixíssima a taxa residencial e comercial de penetração, está presente em todo o território brasileiro. A comunicação móvel, 3G ou 4G, não.

Sistema serve razoavelmente bem os municípios mais ricos e serve muito mal ao restante do país

O cenário só piora se falamos de TV a cabo ou infraestrutura fixa de banda larga. A taxa de penetração da banda larga fixa é inferior a 3% no Norte e Nordeste, na metade de Minas Gerais e grande parte do Centro-Oeste e Sul. A taxa sobe para mais de 10% num limitado número de cerca de 340 municípios. Não é mera coincidência que nesses mesmos municípios esteja concentrado o grosso da oferta de TV a cabo, cuja infraestrutura também serve à banda larga: é que nesses municípios se concentra a renda brasileira, logo o efetivo mercado consumidor.

Hoje em dia, quase 20 anos depois da privatização da Telebrás, o nosso sistema de telecomunicações serve razoavelmente bem a um reduzido pedaço do território nacional que pode ser delimitado entre 300 a 600 municípios: os mais populosos e ricos. Serve muito mal ao restante do País. Esse restante corresponde justamente à área coberta pela Oi, ex-Telemar, que ora se encontra sob recuperação judicial. Pode ser, como muitos alegam, que parte dessa sua situação se deva a erros estratégicos e de gestão.

Mas a origem dos problemas é estrutural: simplesmente, os serviços de comunicações não são rentáveis na maior parte do Brasil por ela atendida. Embora sua infraestrutura de STFC chegue a praticamente todo o território nacional, a renda marginal da maior parte da população não cobre o custo marginal do serviço. Donde 45% da rede da Oi está ociosa. Para suprir essa carência serviria o Fust. Nunca empregado, acumula quase R$ 20 bilhões que poderiam ser investidos na universalização, agora, da banda larga.

Sabemos que o STFC não tem futuro e seu sucessor será a banda larga fixa e móvel. Se o conceito de “regime público” refere-se justo a serviços essenciais, estamos falando de uma infraestrutura que será essencial para a sociedade. Logo, precisará de metas de universalização, continuidade e modicidade tarifária, além dos recursos do Fust, para chegar inclusive onde o STFC não chegou. Ou seja, para o lugar do STFC, caberia pensar na modelagem de um serviço em regime público que tivesse por objetivo universalizar a infraestrutura de banda larga.

Mas, ao invés disso, a Anatel e o governo estão apoiando o projeto de lei PLC 79/2016 que visa extinguir o “regime público” e encerrar as concessões da Oi e da Vivo antes do tempo. Essas concessionárias seriam transformadas em autorizatárias que se comprometeriam a investir na expansão da infraestrutura de banda larga, Brasil a fora, o mesmo valor dos “bens reversíveis” que deveriam devolver à União ao final dos contratos, em 2025.

É estranho que esse projeto, conforme esclarece o presidente da Anatel, Juarez Quadros, em artigo neste Valor de 31/12/2015, confunda o valor de bens patrimoniais com valor de empresa, este sim eventualmente avaliável pelo método do fluxo de caixa descontado. Estamos falando de ativos cujo valor pode até ser depreciado, mas que a concessão obriga-se justamente ao contrário: que os investimentos nele feitos não somente sustentem o seu valor como mesmo o apreciem. A concessionária está obrigada a manter e valorizar o ativo recebido. Este princípio deve valer para barragens hidrelétricas, estradas de rodagem, aeroportos… telecomunicações.

Se, nos últimos 20 anos, os cabos de cobre de par trançados foram substituídos por fibra ótica, ótimo! As concessionárias apenas cumpriram com suas obrigações e esses cabos óticos (e tudo o mais) são agora parte do patrimônio da União, vale dizer, do povo brasileiro, ao qual serão devolvidos no final dos contratos.

Se o STFC, apesar dos pesares, está presente em todo o território nacional e os demais serviços não, isto se deve justamente às obrigações contratuais às quais as concessionárias se submeteram. Já uma operadora em “regime privado” não pode ser contratualmente obrigada a assumir esses compromissos. E se vier a isto ser obrigada, então anula-se, na sua própria lógica, o argumento que defende a extinção do “regime público”. Se é para impor condições contratuais dignas de “regime público”, para que transformar as concessionárias em autorizatárias?

Certamente, a razão é outra. Segundo se lê aqui ou ali, a verdadeira razão seria viabilizar a transferência do controle da Oi para outros investidores, uma vez desobrigada de continuar atendendo ao imenso Brasil pobre. Brasil este que, se já quase não tem acesso a dados nem imagem pela internet, corre agora o risco de ficar até sem voz…

* Marcos Dantas é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, membro do Comitê Gestor da Internet (CGI.br). E-mail: mdantas@inventhar.com.br.